Stephen Jay Gould comentou, certa vez, como a compreensão de grandes questões da biologia depende da investigação minuciosa de detalhes aparentemente sem importância da história natural dos seres vivos. Charles Darwin, lembrava-nos Gould, amadureceu suas ideias revolucionarias escrevendo livros inteiros sobre cracas, orquídeas e minhocas. O próprio Gould, conhecido por suas opiniões ambiciosas sobre a teoria da evolução, dedicou vários anos da sua vida ao estudo da morfologia das conchas de caramujos das Ilhas Bermudas.
Uma destas minúcias biológicas vinha intrigando os ornitólogos norte-americanos há décadas. Cerca de um terço dos indivíduos de uma subespécie de pica-pau, normalmente com penas das asas amarelas, passaram a exibir penas vermelhas.

O pica-pau em questão é o Northern Flicker (Colaptes auratus), parente próximo do pica-pau-do-campo e do pica-pau-verde-barrado, duas das espécies de pica-paus mais conhecidas no Brasil. Existem duas subespécies de Colaptes auratus, separadas uma da outra pelas Montanhas Rochosas. A subespécie C. auratus cafe (Red-shafted Northern Flicker) vive na costa oeste e possui penas vermelhas nas asas; a subespécie C. auratus auratus (Yellow-shafted Northern Flicker) vive na costa leste e possui, normalmente, penas amarelas nas asas (além de outras diferenças de coloração na cabeça). No entanto, penas vermelhas nas asas de indivíduos de C. auratus auratus passaram a ser observados frequentemente na costa Leste, embora permanecessem isolados da subespécie que normalmente apresenta penas vermelhas.
O que poderia causar esta variação? A maioria das aves não produz pigmentos vermelhos (papagaios e turacos são algumas das exceções). Penas vermelhas, em geral, dependem do consumo e da modificação de pigmentos encontrados nos alimentos, especialmente carotenos.
Em junho deste ano, um estudo liderado por pesquisadores portugueses revelou um mecanismo genético para a produção da cor vermelha em aves. Eles utilizaram como modelo canários vermelhos, um híbrido entre os canários amarelos (originários das Ilhas Canárias) e um pintassilgo nativo da Venezuela (Spinus cucullata). O híbrido foi produzido por criadores no início do século XX e, posteriormente, selecionado para ser vermelho, mas cantar como um canário. Dessa maneira, sem querer, os criadores geraram um modelo perfeito para investigar a genética da coloração vermelha em aves. Coube aos cientistas, algumas décadas depois, comparar os genomas dos canários vermelhos ao genoma dos canários amarelos. Eles encontraram um gene dos pintassilgos altamente expresso no fígado e na pele de canários vermelhos. Este gene codifica uma enzima capaz de transformar carotenoides amarelos (betacaroteno) em carotenoides vermelhos (cantaxantina).

O caso dos pica-paus é muito parecido ao dos canários. A cor vermelha nas penas das asas dos pica-paus da costa oeste depende da presença de uma enzima capaz de transformar um caroteno amarelo em um caroteno vermelho.
Surpreendentemente, Jocelyn Hudon, da Universidade de Alberta, no Canadá, em colaboração com colegas de diversas universidades norte-americanas, não encontrou o mesmo pigmento nas penas vermelhas dos pica-paus aberrantes da costa leste. A cor vermelha nas penas destes indivíduos era causada pela presença de um raro pigmento vermelho, chamado rodoxantina
Pica-paus do gênero Colaptes passam grande parte do tempo no solo buscando insetos, especialmente formigas. Eles complementam a dieta com frutos, incluindo, no caso dos pica-paus com as cores das penas alteradas, amoras de uma espécie de madressilva (Lonicera) nativa da Ásia Central e introduzida na costa leste do EUA no século XVIII. Durante o outono, quando os pica-paus estão mudando as penas das asas, esta espécie de madressilva produz amoras ricas em rodoxantina.
Esta era a chave do enigma. Uma planta exótica, que se tornou uma praga na costa leste dos Estados Unidos, oferece, durante a muda das penas das asas dos pica-paus, um novo pigmento na sua dieta, resultando numa fenocópia da outra subespécie.
Sim, é um pequeno detalhe de história natural. Porém, recorda-nos que, em biologia, o mesmo pode ser diferente, que a realização de um fenótipo particular está intricadamente ligada ao seu ambiente, e que, portanto, para preservar, é necessário conservar a rede de relações das quais depende a realização do fenótipo de cada espécie.
João Francisco Botelho (Yale University)
Para saber mais:
Hudon, J., K. L. Wiebe, E. Pini & R. Stradi (2015). Plumage pigment differences underlying the yellow–red differentiation in the Northern Flicker (Colaptes auratus). Comparative Biochemistry and Physiology, Series B 183:1–10.
Hudon J. et al. (2017) Diet explains red flight feathers in Yellow-shafted Flickers in eastern North America. The Auk 134: 22-33.
Lopes, R. J. et al. (2016) Genetic Basis for Red Coloration in Birds. Current Biology 26: 1427-1434.
Moore, W. S. (1987). Random Mating in the Northern Flicker Hybrid Zone: Implications for the Evolution of Bright and Contrasting Plumage Patterns in Birds. Evolution 41: 539-546.
Mundy N. I et al. (2016). Red Carotenoid Coloration in the Zebra Finch Is Controlled by a Cytochrome P450 Gene Cluster. Current Biology 26: 1435-1440.
Thomas, D. B. et al. (2014). Ancient origins and multiple appearances of carotenoid-pigmented feathers in birds. Proceedings of the Royal Society B 281: 20140806
Qual a importância disso para o homem? Com tanta criança passando fome, com a zika causando microcefalia e tantos outros males, os cientistas não podiam gastar os seus cérebros com coisas mais relevantes para a humanidade?
CurtirCurtir
Prezada Patrícia,
O argumento é comum, e de fato suscita uma discussão ampla, que não teremos como aprofundar agora. De qualquer modo é central para entender o papel do conhecimento, não somente científico, qualquer conhecimento. Tem implicações importantes para se entender os objetivos da ciência e suas relações com os valores. O argumento que você constroi, Patrícia, está, de um ponto de vista ético, pautado numa ética utilitarista ou consequencialista, de acordo com a qual uma ação é boa (no caso, uma ação de produção de conhecimento) se tem consequências que maximizam o bem para o máximo de envolvidos. (De passagem, podemos ver que a ética dominante hoje, de tão individualista, nem consequencialista ou utilitarista é).
Não há dúvida de que esta é uma posição ética que pode ser assumida de modo válido diante do conhecimento. O problema é que por vezes as pessoas assumem que esta é a única posição ética válida, como se ela fosse auto-evidente. Seu argumento termina por fazer isso. Diante disso, pode ser interessante pensar que, no campo da filosofia moral e da ética, há uma diversidade de teorias morais e, ao assumir outra que não a ética consequencialista, nossa apreciação do bem de uma ação (inclusive de produção de conhecimento) se transforma. Numa ética kantiana, por exemplo, de caráter principialista, há princípios morais absolutos, com os quais todo ser racional deve se comprometer e, sendo os humanos racionais, com os quais todos os humanos devem se comprometer. Desta perspectiva, poderíamos construir o argumento de que buscar conhecimento é um princípio moral absoluto do ser humano, é definidor do que nos faz humanos, de modo que a satisfação (até mesmo a epifania) de compreender as coisas justifica a produção do conhecimento. (De passagem cabe comentar o quanto é assustador, ao menos para mim, constatar que as pessoas não se maravilham mais com o puro conhecimento). Compreender que o universo é finito e discoidal pode não ter aplicação prática alguma, mas diz profundamente algo sobre nós, humanos, capazes de compreender tanto, sobre a vastidão do tempo e do espaço, desde o nosso “planetinha azul”. Por fim, temos a ética das virtudes, que considera que uma ação correta, ou boa, é aquela que seria realizada por um agente virtuoso. Decerto, aplicá-la à ação de produção de conhecimento implicaria definir um cientista que o produziu como “agente virtuoso”. Decerto há complicações em tal qualificação/definição e dificilmente ela poderia ser feita para todo e qualquer cientista.
Pois bem: o que isso ilustra? Veja que legal, Patrícia, um comentário simples e até mesmo, aos olhos de muitos, óbvio, acaba se tornando menos óbvio quando aprofundamos a discussão. Há opções teóricas a serem feitas, as quais mudam inteiramente como entendemos o mundo. Isso é interessante porque vale em todos os casos. Nós nunca observamos “com olhos puros” o mundo, nós sempre o interpretamos de alguma maneira, seja com alguma teoria bem formada, seja com algum conjunto de noções pré-teóricas, pouco analisadas. Pretender não ler o mundo com o olhar de alguma teoria, de algum conhecimento prévio, é simplesmente ler o mundo com uma bagagem teórica não declarada. Pior ainda, se for não declarada para nós próprios, que lemos o mundo, porque isso nos torna sujeitos de quem exerce por nós o poder de interpretar o mundo e, assim, facilmente nos impõe certa interpretação do mundo como se fosse o mundo.
A questão é mais complexa do que parece, em suma, porque o comentário que fez, Patrícia, depende de optar por uma ética utilitarista e há outras opções éticas disponíveis no conhecimento humano, inclusive algumas, como a kantiana (entre outras, como também a aristotélica), que justificam o conhecimento como um bem em si mesmo. Claro, você pode defender sua posição ética utilitarista, ela é uma posição válida. O problema é se você apenas defende tal posição sem perceber que é uma opção ética, entre outras. Se for isso, espero que esse comentário a estimule a desbravar o maravilhoso mundo das teorias éticas. Veja, p. ex., as várias entradas sobre ética na ótima Stanford Encyclopedia of Philosophy (http://plato.stanford.edu/search/searcher.py?query=ethics). São uma boa porta de entrada. A Wikipedia tb tem várias páginas sobre o assunto: https://en.wikipedia.org/wiki/Category:Ethical_theories
Devo comentar ainda que, mesmo de uma ética puramente utilitarista, o estudo dos pesquisadores sobre as penas vermelhas dos pica-paus tem utilidade. É interessante notar que não é uma utilidade óbvia, o que mostra que é também parte do trabalho de um cientista propor aplicações que não são obviamente visíveis. Imaginem se um cientista nunca tivesse tido a ideia de que microondas, pelo modo como interagem com a matéria, poderiam servir para cozinhar alimentos? Não é nada óbvio que se pode cozinhar alimentos desde dentro, pelo aumento da agitação molecular, e tampouco que microondas poderiam fazer isso. Possivelmente não teríamos forno de microondas, algo que muitos consideram tão prático, não fosse uma pesquisa básica sobre a natureza da interação de microondas com a matéria. Voltarei a este aspecto mais abaixo. Mas por ora, qual a utilidade de se entender a origem alimentar da cor vermelha das penas dos pica-paus? Esse entendimento mostra, por exemplo, o impacto que espécies invasoras podem ter sobre espécies locais, indicando, de um ponto de vista bastante prático, a necessidade de medidas e normais legais que restrinjam a circulação de espécies invasoras. Estas espécies são um dos maiores problemas ambientais atuais e, como não subsistimos sem os ambientes em que vivemos, com sua biodiversidade, é também um problema para nós. Veja-se, por exemplo, esta interessante discussão sobre como espécies invasoras implicam mais riscos do que originalmente se pensava, para biodiversidade, saúde e economia: http://www.eea.europa.eu/highlights/invasive-alien-species-a-growing
Quem haveria de se preocupar com uma espécie invasora quando tem tantas doenças acometendo a espécie humana? O problema é que não tem separação entre questões de saúde e questões ambientais, e a ciência, respondendo perguntas cuja importância não entendemos, em princípio, tem nos mostrado tal interdependência.
Mas vamos em frente. Posso apontar mais uma utilidade, também pouco óbvia, do estudo sobre as penas vermelhas dos pica-paus. Saber que se trata de uma fenocópia pode impedir propostas de usar recursos para conservar essa subespécie pela peculiaridade de suas penas. Sim, esta é uma questão importante: recursos e força humana para conservação são limitados e temos, então, de usar sabiamente os recursos limitados que temos. Conhecer que uma característica que parece diagnóstica de uma espécie é um produto de um contexto ambiental pode, eventualmente, implicar que valeria mais a pena investir recursos na conservação de outras (sub)espécies. Claro, isso é controverso e não estou dizendo que devemos bater o martelo contra o pica-pau com suas penas vermelhas. Não sei. É algo a pensar mais. Só estou apontando que estudos como este podem ser úteis quando tentamos responder uma pergunta que nem sempre nos colocamos (mas a pesquisa científica mostra que deveríamos nos colocar): o que devemos conservar? Em seu livro Sex and Death: An Introduction to the Philosophy of Biology, que pretende nos mostrar inclusive por que a teoria importa (e não só a aplicação), Kim Sterelny e Paul Griffiths discutem essa questão: http://press.uchicago.edu/ucp/books/book/chicago/S/bo3638489.html
Por fim, muitas das aplicações práticas que mais adoramos resultaram de pesquisas diante das quais alguém poderia perguntar: por que pesquisar isso se tem tanta doença atingindo nossas crianças? O laser, por exemplo, foi descoberto a partir de estudos que investigavam a natureza da luz. Desde a perspectiva ética pela qual entendo o mundo, saber o que é luz já é suficientemente incrível para justificar estudos a seu respeito. É um ganho extra que isso tenha nos dado o laser, que usamos desde nosso lazer até nossos tratamentos médicos. Para mim, pelo menos, isso é só um ganho extra. Saber o que é a luz é muito mais sensacional, ou saber que o universo é finito e discoidal, ou saber que estrelas e planetas se atraem uns aos outros porque distorcem o espaço-tempo. É o que diz a teoria de Einstein! Incrível! Mas sabe por que Einstein ganhou o Nobel. Está escrito na página do Nobel: “por seus serviços à Física Teórica e especialmente por sua descoberta da lei do efeito fotoelétrico” (http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/physics/laureates/1921/). Este é o efeito que faz, por exemplo, portas de elevador não fecharem sobre nós. É interessante, tem várias aplicações, mas não é mais que uma pálida sombra diante das realizações teóricas de Einstein! Ele deveria ter ganho o Prêmio Nobel somente “”por seus serviços à Física Teórica”. Não precisava de mais nada. Mas Alfred Nobel, ao escrever o regulamento do prêmio que leva seu nome demandou que somente fosse dado a “descobertas” empíricas. Sim, o Nobel tem uma visão pobre de ciência. Espero que este comentário estimule a todos, inclusive você, Patrícia, a maravilhar-se pelo conhecimento em si mesmo, pelo entendimento que a ciência nos dá sobre o mundo, seja com uma teoria da relatividade, seja com uma teoria da seleção natural (entre muitos, muitos exemplos…). Contrariamente ao que pensam alguns, a ciência enche o universo de significado e, quando valorizamos o conhecimento em si mesmo, podemos obter do conhecimento uma epifania que alguns acham que está restrita às experiências religiosas. Não é correto. Tenho dessas epifanias quase todos os dias!
Obrigado, Patrícia, por nos provocar! E daí nos fazer discutir mais um assunto interessante!
Valeu!
Abraços
Charbel
CurtirCurtir
Por que tudo que a ciência produz tem que ser importante para o Homem? Acho que aí está a diferença entre pesquisa pura e aplicada. Ambas tem seus os seus propósitos e valores. Neste caso descobrir o mecanismo que alterou a cor da pena e a bioquímica do processo e sua relação com a evolução, o comportamento e a sobrevivência da espécie de pica-pau, por exemplo, parece ser o mais importante. Com seu tipo de pensamento jamais descobriríamos os segredos do comportamento social dos primatas para entendermos melhor o comportamento humano. Não há a necessidade da ciência ser única e exclusivamente voltada para a melhoria da qualidade de vida humana. A Ciência Pura continuará sempre tendo o seu importante valor.
CurtirCurtir
A ciência constrói uma rede de conhecimento que permite a inovação, a reflexão, o entendimento.
Entre outras coisas, essa rede nos protege de problemas como o Zika.
Para construí-la, é preciso buscar o conhecimento verdadeiro, não o só a utilidade imediata. Sabemos quais mosquitos transmitem o vírus, sabemos de sua origem na África, sabemos que tipo de célula é afetada – tudo isso foi descoberto pela rede construída por entomólogos, exploradores, biólogos celulares, etc.
A ciência é meio e fim, tanto quanto a arte, para uma sociedade melhor.
CurtirCurtir