(in)corpóreo

Evolução da linguagem mostra continuidade evolutiva entre mente e corpo, que não devem ser considerados atributos independentes de um organismo

Temos certeza que comandamos nosso corpo. Temos portantocerteza que há nós, e há ele, o corpo, e isso se reflete em muito do que dizemos ou fazemos no dia a dia. Essa certeza inaugura uma divisão primeira entre o corpo, matéria bruta ignorante, e a mente, prodígio do raciocínio que pode nos elevar acima e levar além. 

O corpo, elemento primitivo que nos conecta ao mundo selvagem, e o espírito, fonte do processo civilizatório. O corpo, diamante bruto que evolui lentamente sob controle da genética, e o cérebro, diamante bruto lapidado pela vida social, pela história da humanidade, que evolui na velocidade do pensamento.

Por um lado, estas dicotomias nos dão uma liberdade fantástica, uma possibilidade de refundarmos nossa história arcaica, sobrescrevendo-a com uma nova história, ágil como as ideias. Esta cisão corpo/mente nos permitiria, por exemplo, apagar os acasos da genética através da cultura. Esta cisão, enfim, permitiria sermos donos de nosso destino, de nossa história pessoal, de nossas escolhas, de nosso sexo e gênero, porque através dela entenderíamos que estamos no controle de nosso corpo. Com uma grande liberdade surge também uma grande responsabilidade, fundamental para regularmos esse nosso novo passo, um passo agora livre das leis biológicas.

Por outro lado, uma visão não dicotômica, e sim unificada, na qual corpo e mente são um só, é também uma ideia poderosa. Se corpo e mente forem uma só coisa, o ser humano se vê subitamente como um ente natural, e encontra na natureza um aliado, pois está, desde sempre, à vontade em meio a esta sua morada: que seja eterna, enquanto dure. Este homem assim concebido se inscreve desde sempre na ordem natural das coisas, pois segue sempre leis biológicas, e isso lhe tira um peso, por vezes, gigantesco: o peso de ser responsável pelo estado atual das coisas. Se você decide seu destino, se não segue cegamente leis que preordenam as coisas, então este mundo foi criado por suas decisões, e não adianta reclamar que está tudo errado, que os recursos naturais estão acabando, que a pobreza está aumentando, que a política está falida. Dá para entender o poder de uma ideia que nos coloca dentro da natureza, em um lugar onde tudo ocorre sob a tutela insuspeita da seleção natural.

Há teorias sobre a relação entre a mente (cognição) e o corpo. A mais conhecida delas é derivada do dualismo Cartesiano, e abraça o funcionalismo. A ciência cognitiva, em geral funcionalista, defende que a mente é uma organização, e não um objeto material palpável. Podemos construir uma casa com tijolos, com pedras, ou com madeira, e, independentemente do material bruto escolhido, ela será sempre uma casa. Assim seria a mente: ela diria respeito basicamente à informação que temos em nosso sistema nervoso central, mas esta mesma informação poderia ser processada em substratos não biológicos, como megacomputadores. Segundo tal concepção, no futuro, nossa mente poderia ser transportada para outros corpos, sem perda alguma: penso, logo existo. Esta ideia quase intuitiva tem estado há muitos anos sob ataque, e vem perdendo terreno continuamente. A esta ideia se associa a noção de que podemos aprender qualquer coisa, que somos uma tabula rasa, que a biologia, nossa matéria bruta crua, não limita ou canaliza a aprendizagem.

Contra esta concepção geral se levanta uma corrente de pensamento (e uma torrente de evidências): animais diferentes aprendem coisas diferentes, e fazem isso não porque vivem em condições diferentes, mas porque apresentam percepção e memória diferentes, porque dão relevância a aspectos diferentes de um mesmo ambiente. Nesse sentido, a linguagem humana é um exemplo importante. Importante porque é em grande parte em função dela que parecemos nos distanciar do restante dos animais, e importante também por se constituir em um dos fundamentos sem o qual a cultura como a conhecemos desapareceria. Este fosso entre humanos e animais está na base do pensamento Cartesiano, segundo o qual somos o pensamento que comanda o corpo, enquanto os animais seriam apenas corpos maquínicos. Para alguns, ainda, a linguagem estaria na base daquilo que se chama o grande salto para a cultura, um explosivo crescimento na cultura material humana, que poderia estar relacionado a alguma macromutação que teria levado nosso sistema cognitivo a um novo estado.

Segundo a teoria da gramática universal de Chomsky, o cérebro seria um sistema gerador de gramática, e teríamos funções gramaticais comuns às cerca de 7000 línguas humanas. Haveria então um módulo linguístico no cérebro, que teria evoluído a partir de uma macromutação, ou a partir de alterações em genes reguladores. Apesar do sucesso desta teoria, a qual mostraria um traço biológico universal da linguagem, quando etnógrafos fizeram uma busca exaustiva por uma possível estrutura linguística universal, chegaram a conclusões desanimadoras. Línguas, existentes e arcaicas, diferem em termos fonéticos, gramaticais, léxicos e semânticos. Por exemplo, a recursividade (a capacidade de encaixar frases dentro de frases), previamente considerada um dos atributos de uma suposta gramática universal, está ausente em várias línguas. Nem todas as línguas apresentam verbos, substantivos, preposições ou adjetivos. Prefixos ou sufixos também não são universais. Enfim, todos os atributos que foram até o momento propostos como universais falham face a uma investigação etnográfica mais aprofundada. Isso implica que aquilo que caracteriza a linguagem humana é sua diversidade, e não sua uniformidade. Para muitos, isto pode significar que a linguagem deixaria de ser um atributo biológico, e passaria a ser um atributo eminentemente cultural. Estaríamos então atravessados pela dicotomia corpo/mente: em algum momento crucial de nossa evolução teríamos deixado de ser apenas máquinas biológicas, passando a rodar um ‘software’ (a cultura) no cérebro, que seria o ‘hardware’ biológico.

Muitos resistiram a estas conclusões, argumentando que não se pode detalhar demais os elementos linguísticos, porque o detalhe convida a diferença: teriam que ser utilizadas definições abrangentes das classes gramaticais para se encontrar os supostos universais da linguagem humana. Buscando fugir destas dificuldades, um estudo recente avaliou diretamente o surgimento de linguagens de sinais em comunidades de surdos-mudos. Foram estudadas comunidades na Nicarágua, em Israel, e entre Beduínos. Apesar de a linguagem de sinais ter seguido caminhos independentes nas diversas comunidades, havia tendências comuns. A cada nova geração as expressões eram mais ricas, gramaticalmente mais complexas, e com o acréscimo de novas formas de expressão, utilizando-se um número maior de partes do corpo. Quando a comunidade atingia uma massa crítica de falantes, a língua começava a se tornar mais complexa. Na primeira geração a conexão entre os vocábulos já existia, mas era inconsistente no grupo. Na segunda e terceira gerações, já havia formas de pontuação em frases complexas, sinalizando digressões e interrupções na linha de raciocínio. Além do aumento de complexidade, todas as comunidades passaram pelas mesmas etapas. Na primeira geração de falantes, usa-se a mão dominante, na segunda acrescenta-se movimento de cabeça (indicando tópicos e questões), na terceira acrescenta-se expressão facial (apontando relações entre tópicos), na quarta o movimento do torso (indicando sobre quem ou o sobre o quê se fala), e na etapa seguinte utiliza-se também a mão não dominante (para classificar e indicar continuidade entre tópicos).

Este resultado nos permite entender simultaneamente a diversidade e a universalidade da linguagem humana. Cada língua teria um processo de evolução cultural único, ligado às condições locais da comunidade, gerando diversidade linguística (ausência de universalidade). Ao mesmo tempo, as línguas passam por etapas semelhantes em sua evolução cultural, ou seja, há uma universalidade não no produto final (a língua), mas no processo de aquisição, o que aponta para universais biológicos balizando a cultura.

Com mais esta virada nos estudos empíricos da linguagem entendemos o quanto é difícil separar a linguagem do corpo que a expressa. A linguagem evolui em conexão com este corpo. Pode por vezes dirigir a evolução do corpo, por vezes ser conduzida por sua evolução, mas nunca pode ser vista como separada do corpo. Isso implica que, até o ponto em que a mente depende da linguagem, mente e corpo caminham de mãos dadas. Agora, andar juntos implica que nem um nem outro conduz sozinho. Este resultado não nos permite nem voltar ao ventre da natureza mãe intocada, nem nos libertar dos ditames das leis biológicas: somos ao mesmo tempo o resultado e os responsáveis pelo estado atual de um mundo que nos inventou, e que reinventamos a cada dia.

Hilton Japyassú (UFBA)

PARA SABER MAIS

Berwick, R. C., & Chomsky, N. (2016). Why only us: Language and evolution. Cambridge, MA: MIT Press.

Hauser, M. D., Chomsky, N., & Fitch, W. T. (2002). The faculty of language: what is it, who has it, and how did it evolve? Science, 298(5598), 1569-1579.

Johnson, M. (2006). Mind incarnate: from Dewey to Damasio. Daedalus, 135(3), 46-54.

Lakoff, G., & Johnson, M. (1999). Philosophy in the flesh: The embodied mind and its challenge to western thought. Basic books.

Sandler, W. (2012). Dedicated gestures and the emergence of sign language. Gesture, 12(3), 265-307.

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