O pato que pode não voar

No final do ano de 1832, Charles Darwin estava nas Ilhas Malvinas, no extremo sul do continente americano, quando escreveu em seu diário de viagem: “Nessas ilhas, um grande pato … é muito abundante… Suas asas são muito pequenas e fracas para permitir o voo, mas com sua ajuda, parcialmente nadando e parcialmente batendo na superfície da água, eles se movem muito rapidamente…. Esses patos desajeitados e cabeçudos fazem tanto barulho e respingos que o efeito é extremamente curioso.” Em seguida, reflete sobre duas outras aves que havia conhecido na sua viagem e que também não usavam suas asas para voar: emas e pinguins. A ideia de descendência com modificação começava a decolar na sua cabeça.

Embora todas as aves modernas tenham evoluído de ancestrais voadores, várias espécies não voam. Nossas emas, como observou Darwin, estão adaptadas à vida nos cerrados, caatingas e campos, onde correm com suas pernas fortes e asas pequenas. Pinguins “voam” debaixo d’água, com asas transformadas em nadadeiras, ossos pesados e penas que mais parecem escamas. Elas evoluíram de ancestrais voadores, há mais de 60 milhões de anos, e não possuem parentes próximos vivos que nos permitam investigar os detalhes da transição para uma vida longe dos céus.

Os patos que Darwin viu nas ilhas Malvinas oferecem um melhor caso para investigar essas transições. Eles são chamados de quetru (ketru significa pato na língua do povo mapuche) ou patovapor em espanhol e steamer em inglês (em referência aos antigos barcos à vapor com pás laterais). Existem quatro espécies, que pertencem ao gênero Tachyeres (Figura 1). O mais comum é T. patachonicus ou quetru voador, que habita todo o sul da América do Sul, incluindo rios e lagos do interior. As outras três espécies são costeiras e não voam: T. pteneres habita a costa do Chile, pelo lado do Pacífico, T. leucocephalus habita a costa atlântica da Argentina, e T. brachypterus habita as ilhas Malvinas e provavelmente foi a espécie que divertiu o jovem Darwin. As quatro espécies são muito parecidas, sendo difícil identificá-las na água. A principal diferença está no corpo menor e nas penas mais longas das asas e do rabo do quetru voador.

Figura 1: as quatro espécies de Tachyeres (modificado de birdsoftheworld.org).

Em 2012, Fulton e colaboradores compararam o DNA das quatro espécies e fizeram duas descobertas importantes. As espécies não-voadoras não estão mais relacionadas entre si, mas perderam a capacidade de voar independentemente, e indivíduos voadores encontrados nas ilhas Malvinas não são quetrus voadores (T. patachonicus), mas T. brachypterus capazes de voar. Quer dizer, a espécie que habita as ilhas Malvinas tem indivíduos voadores e não-voadores. Já se conhecia uma situação inversa, que alguns machos grandes de quetru voador (T. patachonicus), que habitam ilhas do extremo sul do continente, não são capazes de voar.

Esses dados confirmam dois aspectos importantes na transição evolutiva a espécies não-voadoras. Ela ocorre como um evento variacional em uma população com indivíduos voadores e não-voadores, e em um contexto ecológico que permite e facilita um modo de vida não-voador. Esse contexto é encontrado frequentemente em ilhas isoladas, sem mamíferos terrestres, quando colonizadas por espécies que não dependem do voo para se alimentar. O biguá das Galápagos e o Dodô da ilha de Maurício são dois exemplos famosos (ambas extintas com a chegada de humanos e animais domésticos às ilhas).

Patos têm ainda outra característica que pode facilitar a perda do voo. Asas possuem penas longas e assimétricas especializadas, chamadas de primárias, que a maioria das aves renova uma por vez para não perder a capacidade de voar. Patos renovam anualmente todas as penas primárias de uma vez e não podem voar por aproximadamente um mês. Isso é possível porque a maioria das espécies tem um estilo de vida que permite se alimentar e se proteger sem voar.  De fato, patos não voadores evoluíram outras vezes no arquipélago do Havaí (todas extintas recentemente) e em ilhas subantárticas ao sul da Nova Zelândia (duas espécies ameaçadas de extinção).

Mais recentemente, Campagna e colegas sequenciaram os genomas de 59 indivíduos das quatro espécies de patos em busca das causas da variação na capacidade de voo. Eles não encontraram regiões do genoma claramente associadas à perda do voo e reconheceram que a variação poderia não ser genética. Por exemplo, poderia estar associada à alimentação e aos seus efeitos no tamanho do corpo e comprimento das penas. Outra possibilidade é que as espécies não-voadoras tenham o desenvolvimento das asas atrasado, resultando em uma relação peso/área da asa insuficiente para voar no adulto.

Quase trinta anos depois de ver os patos quetrus pela primeira vez, Charles Darwin escreveu em a Origem das Espécies que “Quando vemos qualquer estrutura altamente aperfeiçoada para qualquer hábito em particular, como as asas de uma ave para voar, devemos ter em mente que os animais que apresentam graus de transição iniciais da estrutura raramente continuarão a existir até os dias de hoje”.  Os patos quetrus são uma dessas raras oportunidades para investigar uma transição evolutiva inicial. Embora ainda não exista uma resposta clara, os dados até agora indicam mecanismos variados, bem ao gosto do velho Darwin.

João Francisco Botelho (PUC de Chile)

Para saber mais:

Campagna, L., McCracken, K.G. and Lovette, I.J. (2019), Gradual evolution towards flightlessness in steamer ducks*. Evolution, 73: 1916-1926

Fulton, T. L., Letts, B., & Shapiro, B. (2012). Multiple losses of flight and recent speciation in steamer ducks. Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, 279(1737), 2339-2346.

Livezey, B. C., & Humphrey, P. S. (1986). Flightlessness in steamer‐ducks (Anatidae: Tachyeres): its morphological bases and probable evolution. Evolution, 40(3), 540

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