Lendo a história do Brasil nos genomas brasileiros

O contato com os europeus e a colonização do assim chamado Novo Mundo levou ao extermínio em massa dos nativos americanos e ao ocultamento da maior parte da sua história, principalmente do período pré-contato. Estudos tem conseguido recuperar antigas migrações nativas brasileiras, bem como aspectos da história pós-contato dessas populações usando dados genômicos.

Atualmente, o Brasil é o país com maior diversidade linguística nativa, concentrando mais de 150 línguas somente na região amazônica. No entanto, a distribuição tanto das línguas faladas quanto dos povos indígenas é hoje muito diferente daquela originalmente encontrada pelos exploradores portugueses no século XV. Nessa época, grande parte da população nativa brasileira (cerca de 900 mil, ou 1/3 do total) vivia na costa atlântica e fazia parte de sociedades complexas. Assim como os biólogos fazem com os seres vivos, os linguistas também utilizam um processo de classificação e nomenclatura das línguas, criando uma classificação hierárquica que vai desde as línguas, passando pelas famílias linguísticas até chegar aos troncos linguísticos. A maioria dos nativos da costa brasileira falava uma língua derivada das línguas amazônicas do tronco Tupí, caracterizadas como o ramo costeiro da família Tupí-Guaraní.

Ao longo do processo de colonização do Brasil pelos portugueses, as populações litorâneas foram gradativamente extintas, por meio de processos de escravização, introdução deliberada ou não de doenças, desterritorialização, deterioração dos meios de subsistência e guerra. Restam hoje apenas pequenas comunidades autodeclaradas indígenas as quais não possuem mais falantes de nenhuma língua nativa. Em um trabalho recente, estudamos uma dessas populações para responder a duas questões principais: Seria essa população, autodeclarada como Tupiniquim, uma representante dos índios do litoral na época da conquista europeia? Quais rotas os Tupí Amazônicos teriam seguido para chegar à costa atlântica e ao sudoeste do Brasil?

Por meio das informações genômicas desta população Tupiniquim, atualmente miscigenada com povos de origem Europeia e Africana, desvendamos alguns aspectos da história recente e antiga do Brasil. Neste sentido, resgatamos as relações de parentesco entre diferentes grupos indígenas atuais, eventos demográficos, movimentos populacionais e datamos os períodos onde a miscigenação ocorreu de forma mais intensa. Além disso, pudemos estimar o número de indivíduos formadores da população Tupiniquim há mais de 500 anos.

Primeiro, examinamos a variação genética da população Tupiniquim em comparação com os de outros nativos americanos ao lado de europeus e africanos, e descobrimos que seus genomas eram predominantemente nativos americanos (o que não é comum em populações miscigenadas brasileiras). Em seguida, usamos os outros componentes (europeus e africanos) do genoma para estimar quando teriam ocorrido os principais eventos de miscigenação entre esses nativos e os outros grupos. Nossos resultados mostraram que esses eventos massivos de miscigenação foram consistentes com os principais eventos históricos da escravidão indígena (Ciclo do Ouro; século 18), com a chegada da família real ao Brasil, o que intensificou o tráfico de africanos escravizados ao país bem como o povoamento da costa, e por último, com a abolição da escravatura, que impulsionou a migração europeia (principalmente italiana) para o Novo Mundo. Além disso, estimamos que o tamanho da população Tupiniquim em 1.500 estaria em torno de 100.000 indivíduos, mostrando a importância desse povo no período pré-contato e colonial. Além disso, de acordo com nossa estimativa baseada em dados genéticos, o colapso dessa população se deu há aproximadamente sete gerações, período muito próximo ao encontrado no registro histórico (em 1877 foram registrados apenas 55 Tupiniquim no Brasil).

Utilizando apenas a porção indígena dos genomas desses indivíduos, pudemos mostrar que eles não apresentavam evidências de miscigenação com outros grupos indígenas brasileiros, e se relacionavam fortemente com os grupos Tupí-Guaraní do oeste da Amazônia. Com base nisso, pudemos inferir que o grupo Tupiniquim faz parte do extinto ramo costeiro do Tupí. Por fim, construímos e testamos modelos para tentar entender a história da população Tupí desde sua origem até a expansão por grande parte da América do Sul. Para tanto, nos embasamos em hipóteses baseadas principalmente em evidências arqueológicas e linguísticas sobre como a expansão Tupí se desdobrou do oeste da Amazônia ao Atlântico e ao sudoeste do Brasil (Figura 1). A primeira hipótese, baseada em dados linguísticos e paleoambientais, afirma que os Tupí se deslocaram da Amazônia em direção ao sudoeste do continente até o Trópico de Capricórnio, e lá uma parte dessa população rumou para o leste dando origem aos Tupí costeiros, e outra permaneceu no oeste originando as população Guaraní. De acordo com essa hipótese, os Tupí eram caçadores-coletores que se dispersaram para outra região do continente devido a mudanças climáticas que reduziram a região de floresta tropical. De acordo com a segunda hipótese, os dois ramos do Tupí (sul e costeiro), teriam se separado ainda na Amazônia, e rumado de maneira independente para sul e leste. Neste contexto, esses grupos Tupí seriam ceramistas e agriculturalistas incipientes que saíram da Amazônia em busca de terras de várzea férteis. A hipótese da separação ainda na Amazônia é evidenciada pelas diferenças na confecção de cerâmicas pelos dois grupos Tupí em relação aos grupos ceramistas Tupí amazônicos.

Figura 1. Hipóteses sobre a expansão dos povos Tupí a partir da Amazônia.

Nossos dados corroboraram a segunda hipótese,segundo a qual os falantes do Tupí eram agricultores incipientes e se expandiram da Amazônia em busca de novas terras para cultivar, movendo-se para o leste até a foz do rio Amazonas e depois seguindo a costa atlântica brasileira. De forma independente, uma segunda expansão foi para o sul e teria originado os povos Guaraní do Sul do Brasil, Paraguai e Argentina. Nossos resultados também apontaram para uma migração antiga da Mesoamérica para as terras baixas da América do Sul, e que provavelmente foi importante para diferenciar os Tupí do Sul (Guaranís do Brasil, Paraguai e Argentina) dos outros grupos Tupí (Amazônicos e remanescentes costeiros). Essa migração provavelmente ocorreu há cerca de 1500 anos, contudo não necessariamente representa uma ligação direta entre estas duas regiões, podendo indicar que o isolamento entre as populações Andinas e das terras baixas ao leste não fosse absoluto.

Nosso estudo recuperou a história milenar de populações indígenas brasileiras virtualmente extintas durante a colonização europeia. Ao estudar as informações genômicas desses indivíduos, fomos capazes de reconstruir a história antiga e recente destes povos, ainda hoje continuamente ameaçadas de extinção e pelo apagamento de suas culturas e identidades.

Marcos Araújo Castro e Silva

Tábita Hünemeier

IB/USP

PARA SABER MAIS:

Salzano FM (2019) The Amerindian Microcosm: Anthropology, Comparative History, Ecology, Genetics and Evolution. Cambridge Scholars Publishing, 607 pp.

Fonte da Imagem de abertura: Retrato de indígenas brasileiros

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