Devagar e Sempre: A Evolução do SARSCoV-2

A pandemia da COVID-19, causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, já dura vários meses, e o número de mortes é assustador. A COVID-19 já matou mais de meio milhão de pessoas em todo o mundo, mais de 77 mil só no Brasil. Apesar de termos hoje, em fase de testes, mais de 90 vacinas e 50 tratamentos, ainda não achamos uma saída clara para essa situação. Assim, permanecemos (espero) em distanciamento social, usando máscaras, lavando as mãos e seguindo outras medidas de segurança para nos protegermos e protegermos aqueles ao nosso redor.

Apesar de os números associados à pandemia causarem espanto, nem todas as notícias são ruins. O sequenciamento do genoma de SARS-CoV-2 em milhares de pacientes ao redor do mundo aponta para uma lenta taxa de mutação, muito inferior, por exemplo, às taxas de mutação observadas no vírus da gripe.  Para a nossa sorte, estima-se que o coronavírus acumule uma a duas mutações por mês, uma taxa até quatro vezes menor do que a do vírus da gripe. Além disso, a grande maioria dessas modificações não afeta o comportamento do vírus e tem pouca importância para a transmissibilidade da doença ou a sua gravidade.

Apesar de lenta, a evolução do SARS-CoV-2 vem sendo monitorada cuidadosamente por pesquisadores de todo o mundo, para melhor compreendermos a dispersão desse vírus nas diversas partes do globo, e também para, quem sabe, conseguirmos encontrar uma maneira de vencermos essa batalha. Foi a partir de tais esforços de monitoramento que tomamos conhecimento de uma nova mutação que está presente naquela que é hoje a forma mais comum do SARS-CoV-2 em quase todo o mundo. Essa mutação tem sido considerada importante, dentre outras coisas, porque resulta na mudança de um aminoácido na proteína do espinho, ou spike, viral. (A proteína do espinho, já discutida em mais detalhes em outro post do Darwinianas, participa do mecanismo de infecção viral, facilitando a entrada do vírus nas nossas células). Mais especificamente, a modificação de uma adenina por uma guanina (A  G) na posição 23,403 do genoma viral resulta na substituição do ácido aspártico (D) por uma glicina (G) na proteína do espinho viral.

Em artigo aceito para publicação na revista Cell, pesquisadores de diversos laboratórios nos EUA e na Inglaterra monitoraram as modificações nas proteínas do SARS-CoV-2, a partir da comparação de milhares de sequências do genoma viral coletadas em pacientes de várias regiões do globo. O que chama a atenção é que essa nova variante do SARS-CoV-2, chamada de G614, se tornou a forma mais comum em quase todas as regiões estudadas: enquanto no início de Março essa variante representava 10% das sequências globais, em meados de Maio essa variante já representava 78% das sequências globais (Figura 1). A dominância da variante G614 em diferentes regiões ocorreu de forma assincrônica, tendo início na Europa e em seguida na América do Norte, Oceania e Ásia. O aumento da frequência da variante G614 foi observado em todos os 5 continentes, e em 16 dos 17 países analisados, ocorrendo também em regiões onde a variante original, a D614, era a forma predominante do SARS-CoV-2 antes da introdução da nova variante (G614) na população.

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Figura 1 – A mudança nas taxas de infecção global pelas variantes do SARS-CoV-2 (variante original e mutante, ou D614 e G614 respectivamente) sugere que a mutação na proteína do espinho confere, ao menos em parte, vantagem à variante G614, que passa então a ser a variante dominante em nível global. [Fonte: Modificado de Korber et al. 2020. DOI: https://doi.org/10.1016/j.cell.2020.06.043%5D

Após a identificação dessa nova variante, os pesquisadores buscaram entender os possíveis mecanismos para explicar a prevalência global da G614. A partir da análise da carga viral de 999 pacientes de COVID-19, os pesquisadores foram capazes de detectar um aumento significativo no número de partículas virais nas vias aéreas superiores (cavidades nasal e oral, faringe e laringe) dos pacientes infectados pela nova variante. No entanto, não foi detectada uma associação entre a variante G614 e severidade da doença. Severidade da doença está correlacionada, nesse e em outros estudos, a idade avançada, sexo masculino e menor carga viral e potencialmente a outros fatores como intensidade da resposta imune ao vírus.

Os pesquisadores realizaram também experimentos com cultura de tecidos, para melhor entender a transmissibilidade dessa nova variante. Para tanto, os cientistas produziram partículas semelhantes ao SARS-CoV-2, exibindo em sua superfície um dos dois tipos de proteína do espinho: a proteína original, ou D614, e a nova variante, ou G614. Nos vários experimentos realizados, os pesquisadores relataram um aumento de 3 a 10 vezes nas taxas de infecção pelas partículas carregando a mutação G614. Uma possível explicação para esses dados é o fato de que a mutação resulta em uma modificação na estrutura do espinho que favorece a fusão do vírus à célula humana, resultando assim em um grande efeito em termos de transmissibilidade (Figura 2). No entanto, esses resultados precisam ser analisados com cautela, e mais estudos precisam ser realizados para entendermos completamente o efeito dessa mutação em humanos.

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Figura 2 – A modificação de um único aminoácido na proteína do espinho resulta em uma variante do SARS-CoV-2 capaz de infectar células de maneira mais eficiente, resultando em um aumento significativo na magnitude da infecção. [Fonte: Modificado de Korber et al. 2020. DOI: https://doi.org/10.1016/j.cell.2020.06.043%5D
Esse estudo abre uma pequena janela que nos permite observar apenas parcialmente a evolução do genoma do SARS-CoV-2. Afinal, o estudo baseou-se em um pouco mais de 28.000 sequencias, das mais de 14 milhões de possíveis sequências que representam o número de casos confirmados de COVID-19 em todo o mundo. Mas, são imensas as implicações de estudos como esse para o desenvolvimento de vacinas ou tratamentos contra o SARS-CoV-2. Entender como o vírus vem evoluindo ao longo do tempo e, principalmente, entender as consequências dessas modificações para o contagio ou a severidade da doença são peças fundamentais para apontar caminhos terapêuticos ou profiláticos viáveis.

Além disso, esse estudo ressalta a importância de mantermos e compartilharmos dados consistentes e de qualidade a respeito dos casos de COVID-19, assim como de outras doenças e agravos a saúde. Os dados utilizados nesse trabalho foram obtidos gratuitamente na plataforma GISAID, uma iniciativa multinacional que promove o compartilhamento de dados a respeito dos vírus influenza e coronavírus, incluindo não apenas sequências genéticas mas também dados clínicos e epidemiológicos. Essa iniciativa supra-nacional busca auxiliar cientistas no estudo da evolução viral, e da dinâmica de dispersão desses vírus durante epidemias e pandemias, como as que vivemos hoje.

A coleta sistemática e o compartilhamento livre de dados a respeito de doenças e agravos a saúde é o arcabouço do que chamamos de vigilância epidemiológica.

No Brasil, vigilância epidemiológica é definida pela Lei n° 8.080/90 como “um conjunto de ações que proporciona o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou agravos” (grifo meu). Como aponta a Organização Mundial de Saúde, um sistema de vigilância epidemiológica eficiente funciona também como forma de alerta precoce para emergências iminentes, e como forma de acompanhar o progresso de doenças ou agravos a saúde através de monitoramento consistente, permitindo assim a definição de prioridades no desenvolvimento de estratégias de saúde pública.

Esses sistemas não apenas fornecem dados importantes para o planejamento de ações de saúde, como também normatizam e orientam as ações dos profissionais de saúde. Sem dúvidas, eles pavimentam o caminho mais curto e são a aposta mais certa para o controle da pandemia atual e de possíveis futuras pandemias. A coleta sistemática desses dados é um dever de todo e qualquer governo e o acesso livre a esses dados é um direito de todos.

 

Ana Almeida

California State University East Bay

(CSUEB)

 

Para saber mais:

Sanjuán, et al. 2010. Viral Mutation Rates. Journal of Virology, 84(19): 9733-9748.

Stern, A. and Andino, R. 2016. Chapter 17. Viral Evolution: It’s all about mutations. IN: Viral Pathogenesis: From Basics to System Biology. Academic Press. 3rd Edition.

Wang, C., Liu, Z., Chen, Z., Huang, X., Xu, M., He, T., and Zhang, Z. 2020. The establishment of reference sequence for SARS-CoV-2 and variation analysis. Journal of Medical Virology 92, 667-674.

Yu, J., Tostanoski, L.H., Peter, L., Mercado, N.B., McMahan, K., Mahrokhian, S.H., Nkolola, J.P., Liu, J., Li, Z., Chandrashekar, A., et al. 2020. DNA vaccine protection against SARS-CoV-2 in rhesus macaques. Science, eabc6284.

Figura de Abertura: Árvore evolutiva do genoma do SARS-CoV-2 [Fonte: https://theconversation.com/heres-how-scientists-are-tracking-the-genetic-evolution-of-covid-19-134201%5D

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