Pistas genômicas sobre a evolução de nossos cérebros plásticos

A aprendizagem e a experiência social moldam profundamente nosso comportamento, cognição, modo de ser. O que estudos genômicos têm mostrado sobre a evolução da plasticidade de nossos cérebros?

São muitos os animais que são capazes de aprender. Mas não encontramos em outros animais a mesma capacidade de responder à experiência e ao ambiente por meio da aprendizagem que vemos em humanos. Nosso comportamento é moldado pela aprendizagem social de uma maneira sem paralelos entre os seres vivos. Que mudanças ocorridas na evolução do cérebro tornaram possível tal capacidade de aprender? No último número de Annual Review of Anthropology, Chet C. Sherwood e Aida Gómez-Robles revisam o que sabemos a este respeito, num artigo sobre plasticidade cerebral e evolução humana. Retomamos aqui algumas de suas ideias.

São muitos os aspectos do desenvolvimento do cérebro humano que fornecem evidências de especialização para plasticidade aumentada: a extensão de tempo do crescimento do cérebro relativamente ao nascimento, as taxas de formação de sinapses e bainhas de mielina, e mudanças na expressão gênica e em modificações epigenéticas. Nesta postagem, concentraremos nossa atenção nestes dois últimos aspectos. 

Mudanças no genoma humano e evolução da plasticidade cerebral

O genoma humano sofreu 17 milhões de mudanças (mutações) em nucleotídeos únicos (as “letrinhas” do DNA: A, T, G, C) e 2,5 milhões de inserções e deleções (acréscimos ou perdas de sequências com mais de um nucleotídeo) desde o ancestral comum que compartilhamos com chimpanzés e bonobos. Para encontrar mutações que estejam associadas a mudanças na plasticidade cerebral em humanos, é necessário realizar estudos comparativos entre sequências genéticas da nossa espécie e dessas espécies proximamente aparentadas. Diante dos milhões de diferenças existentes, é como buscar uma agulha num palheiro. No entanto, a pesquisa científica conseguiu avançar nessa busca, com base em desenvolvimentos teóricos e técnicos, e entre os achados feitos, temos um que é muito importante para entender por que e como nossos cérebros ficaram mais plásticos, mais capazes de serem modificados pelo aprendizado e pela experiência: vias moleculares envolvidas na formação e função de sinapses foram bastante modificadas na evolução do cérebro humano. As sinapses são as zonas ativas nas quais neurônios entram em contato, sem continuidade física, com outros neurônios, assim como com células musculares ou glandulares.

Mutações foram encontradas, por exemplo, em regiões genéticas associadas com crescimento e plasticidade de sinapses, indicando efeitos no funcionamento das conexões entre neurônios que são específicos de humanos. Um caso ilustrativo é o da região denominada FOXP2 (Forkhead Box P2). Esta região codifica um fator de transcrição, isto é, uma proteína envolvida na regulação da taxa de transcrição de sequências de DNA em sequências de RNA mensageiro e, portanto, na regulação dos tipos e das concentrações das proteínas sintetizadas numa célula. O fator de transcrição codificado em FOXP2 tem papel importante no desenvolvimento do controle motor da fala em humanos. Mudanças sofridas por este gene na evolução humana parecem ter alterado mecanismos envolvidos na plasticidade cerebral que se mostram importantes para a aprendizagem da fala. Tem sido proposto, assim, que a evolução da linguagem característica de humanos foi favorecida pela maior plasticidade conferida por alterações em FOXP2.

Notem, contudo, que isso não quer dizer que haveria na região FOXP2 algum gene mestre que explicaria por si só a evolução da linguagem. Temos insistido aqui no Darwinianas na crítica a estas visões míticas sobre o DNA. Alguns pesquisadores chegaram a propor, a partir de achados como o de FOXP2, que a linguagem poderia ter surgido num único salto, com uma única mutação dando origem a todo o sistema cerebral através do qual os humanos expressam significados complexos pela manipulação e combinação de sons. Eu pessoalmente considero essa visão bastante implausível e me alinho com outros pesquisadores que tratam a evolução da linguagem humana como um processo complexo, no qual as propriedades dessa forma de linguagem evoluíram ao longo de milhões de anos, por uma sucessão de linhagens relativamente recentes de hominíneos. Este foi provavelmente um processo multifatorial, envolvendo processos de coevolução entre genes, cultura, ambiente, experiência social.

A desconfiança em relação à explicação da evolução da linguagem num fiat lux causado por uma mutação em FOXP2 foi recentemente reforçada por novas evidências. É de fato comum na pesquisa científica que a busca constante por novas evidências, assim como novos avanços conceituais, mantenha uma salutar disposição para o debate e o amadurecimento de nossas ideias. Um estudo recente lançou dúvida sobre as explicações baseadas em FOXP2. Nesse estudo, não foram encontradas evidências de seleção natural recente da região FOXP2 entre diversas populações humanas. Isso não quer dizer, contudo, que as propostas de um papel para FOXP2 na evolução da linguagem devem ser colocadas de lado. Significa apenas que mais estudos são necessários para entender o papel dessa região genética na evolução da linguagem humana, de uma maneira dinâmica que é própria do conhecimento científico (e, infelizmente, tem desafiado a compreensão do trabalho científico por governantes, público leigo, professores e estudantes de ciências).

Mudanças na expressão gênica e evolução da plasticidade cerebral

Também foram analisadas as mudanças na expressão de RNAs mensageiros e proteínas ao longo do desenvolvimento pós-natal de humanos e outros primatas. Essas análises fornecem uma visão mais dinâmica, que foca não sobre mudanças nas sequências de DNA em si, mas na maneira como elas são mobilizadas nos processos de desenvolvimento. Esse olhar dinâmico é muito importante porque o neocórtex humano, a parte do cérebro envolvida em funções cerebrais de ordem superior, relacionadas à percepção sensorial, cognição, geração de comandos motores, raciocínio espacial e linguagem, é especialmente ativo, dinâmico no que diz respeito a mudanças moleculares ao longo do desenvolvimento. Foi mostrado, por exemplo, que a variação entre indivíduos na expressão de RNA mensageiro é maior em crianças do que em adultos. Foi também mostrado que, ao longo da vida, de 50 a 70% dos genes expressos no cérebro humano sofrem alterações no abundância de RNA mensageiro transcrito, sendo que as mudanças mais rápidas ocorrem em recém-nascidos.

 

Quando comparado com os cérebros de chimpanzés e primatas do gênero Macaca, o cérebro humano exibe um padrão conservado (isto é, com aumentos e diminuições similares nos níveis de expressão) na trajetória de mudanças desenvolvimentais do conjunto completo de moléculas de RNA (o chamado transcriptoma), de pequenas moléculas (o chamado metaboloma) e de lipídeos (o chamado lipidoma) de suas células. As principais diferenças residem na dinâmica temporal das trajetórias de expressão dessas moléculas, sugerindo que um mecanismo importante na evolução do cérebro humano foi a heterocronia. O termo “heterocronia” designa atrasos ou acelerações de eventos no desenvolvimento de diferentes espécies. O caso mais notável é o da extensão dos padrões de expressão gênica associados com a formação e eliminação de sinapses (ou seja, dos genes ditos “sinápticos”) no córtex pré-frontal humano. Mais precisamente, o pico de expressão dos genes sinápticos nessa região do cérebro se desloca de uma duração de menos de um ano em chimpanzés e Macaca para cinco anos em humanos. Isso indica atuação de um mecanismo heterocrônico específico, a neotenia, que leva à retenção de características de estágios anteriores do desenvolvimento em estágios posteriores da vida, na medida em que mudanças desenvolvimentais se tornam mais lentas.

O córtex pré-frontal está associado ao planejamento de comportamento cognitivo complexo, à expressão da personalidade, à tomada de decisão e à moderação do comportamento social. Além disso, tem sido considerado que a orquestração de pensamentos e ações de modo a dar conta de objetivos interno é uma atividade básica dessa região cerebral. Assim, é tentador especular que mudanças na duração da formação e eliminação de sinapses nas crianças humanas poderiam resultar em grandes diferenças cognitivas e sociais entre adultos humanos e outros primatas adultos. Decerto, uma conclusão de alcance tão amplo não pode ser estabelecida com um único estudo, permanecendo sua fundamentação como um caminho de pesquisa a ser mais explorado.

Outros achados interessantes mostram que a plasticidade cerebral não é uma exclusividade das crianças, mas se mantém também nos adultos. Estudos da expressão de RNAs mensageiros e proteínas no cérebro de adultos humanos e de outros primatas mostraram que um maior número de genes expressos diferencialmente em humanos sofre aumento e não diminuição de sua expressão. O neocórtex humano, em particular, exibe expressão aumentada de RNAs mensageiros associados, por exemplo, com formação de sinapses e metabolismo energético aeróbio. Esses achados indicam que humanos exibem, inclusive quando adultos, níveis de atividade sináptica e neuronal maiores do que aqueles exibidos por seus parentes mais próximos.

Epigenética e plasticidade cerebral

Por fim, tem merecido atenção mecanismos epigenéticos que mediam influências do ambiente (incluindo o ambiente social) sobre padrões de expressão gênica no cérebro humano, a exemplo da metilação de DNA e modificação de histonas. A metilação do DNA, por exemplo, consiste na adição de um grupamento metil a nucleotídeos, sobretudo citosinas seguidas por guaninas (CpG). A metilação de promotores – regiões do DNA na qual se inicia transcrição de um determinado gene – pode impedir a transcrição de genes, silenciando-os. No córtex pré-frontal humano, centenas de genes exibem menores níveis de metilação de promotores do que encontrado em cérebros de chimpanzés e macacos rhesus. Isso indica que houve importantes modificações epigenéticas na evolução do cérebro humano, sugerindo um aumento na capacidade de a regulação gênica nesse órgão ser afetada por fatores ambientais e experiências.

Torna-se cada vez mais claro que, malgrado a relevância da genética e, de modo mais amplo, da biologia na evolução e função atual do cérebro humano, reduzir uma ou outra ao papel de genes (num determinismo genético) ou mesmo da biologia (num determinismo biológico) não passa, como nos disse em 1992 Gerald Edelman, de um reducionismo tolo.

Charbel N. El-Hani

Instituto de Biologia/UFBA

 

PARA SABER MAIS:

Jackendoff, R. 2006. How did Language begin? Washington, DC: Linguistic Society of America.

Marques-Bonet, T., Ryder, O. A. & Eichler, E. E. 2009. Sequencing Primate Genomes: What Have We Learned? Annual Review of Genomics and Human Genetics 10: 355-86.

Mendizabal, I. et al. 2016. Comparative Methylome Analyses Identify Epigenetic Regulatory Loci of Human Brain Evolution. Molecular Biology and Evolution 33: 2947-2959.

Sherwood, C. C. & Gómez-Robles, A. 2017. Brain Plasticity and Human Evolution. Annual Review of Anthropology 46: 399-419.

Figura: O cérebro maleável (the malleable brain). Reproduzido de O que é a plasticidade cerebral e por que ela é tão importante? (What is brain plasticity and why is it so important?), The Conversation: http://theconversation.com/what-is-brain-plasticity-and-why-is-it-so-important-55967. A imagem foi reproduzida por The Conversation de: http://www.shutterstock.com

Uma consideração sobre “Pistas genômicas sobre a evolução de nossos cérebros plásticos”

  1. Gosto muito e aprendo também com as matérias aqui apresentadas gostaria muito que elas fossem mais simplificadas para as pessoas que não tem muito conhecimento mais que gosta e precisa ler e gosta de aprender são colocados muitos termos técnicos e muitos leitores como eu não entendo mais gostaria muito de entender obrigada

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