Compreender para cooperar

Golfinhos sabem que estão cooperando com os pescadores no sul do Brasil, ou apenas utilizam os pescadores como uma barreira fixa para nela encurralar o cardume de peixes, aumentando assim a eficiência da captura?

Golfinhos são o máximo. Além das várias histórias em que evitam o afogamento de pessoas, esses mamíferos ágeis e inteligentes ganham ainda mais pontos por atacarem tubarões: pode haver motivo maior para um banhista amar golfinhos? Eles imitam vocalizações, têm dialetos, usam ferramentas para conseguir alimento, enfim, nos maravilham a cada nova pesquisa. A cereja do bolo é que eles ajudam grupos de pescadores nativos a ter um bom dia, direcionando cardumes inteiros para suas redes, e depois ganhando dos pescadores mimos em forma de peixes. Toda essa empatia que sentimos por golfinhos, alimentada por uma vasta iconografia, nos faz pensar neles algo como nossos cães marinhos de estimação, e assim corremos o risco de projetar neles capacidades excessivamente humanas. Por exemplo, será que eles sabem que estão cooperando com os pescadores, ou apenas estão caçando os cardumes de peixes, tentando encurralá-los contra uma barreira qualquer para assim conseguir comer mais?

A cooperação é algo muito comum entre os animais, nos insetos e aranhas sociais, no cuidado à prole própria e dos vizinhos próximos, na formação de casais reprodutivos, na construção de ninhos, refúgios, túneis, diques, até mesmo territórios compartilhados. Agora, será que os animais têm conhecimento dos papéis que cada um deve cumprir em uma tarefa cooperativa? Por exemplo, as formigas muitas vezes cooperam de forma indireta, sem comunicação, deixando uma tarefa inconclusa para as formigas seguintes concluirem. Neste caso parece improvável que a coordenação necessária para uma cooperação eficiente decorra do conhecimento que cada formiga tem do seu papel, e dos papéis complementares que outros indivíduos devem exercer para a conclusão da tarefa. Parece pouco provável que os insetos sociais tenham uma visão geral da obra coletiva em construção, e de como sua atividade particular se encaixa neste coletivo. Cada formiga simplesmente faz aquilo que mais lhe apraz, e ao final a obra está concluída.

Contrastemos o caso das formigas com chimpanzés caçando coletivamente. Chimpanzés em geral caçam pequenos mamíferos, e algumas populações têm estratégias de caça complexas, com um indivíduo aguardando escondido a chegada da presa (frequentemente um macaco menor), que está sendo perseguida por chimpanzés mancomunados com aquele em espreita. Esta coordenação de papéis durante a caça é aprendida ao longo de mais de dez anos de prática, e a carne é dividida de acordo com a importância do papel do indivíduo na caça: aquele que efetivamente matou o macaco ganha mais que os restantes. Aqui parece altamente provável que um membro do bando de caça sabe o que os outros estão fazendo, decorrendo deste conhecimento a eficiência na captura. Os chimpanzés claramente lembram a nós mesmos, com uma compreensão do papel de cada um na tarefa a ser desenvolvida. É por isso que simpatizamos mais com os primatas que com os insetos: os grandes primatas se parecem conosco, e assim criamos com eles vínculos empáticos.

A questão que devemos fazer aos golfinhos é simples: eles sabem que estão cooperando com os pescadores humanos? Esta pergunta tem sido respondida em experimentos controlados nos quais dois indivíduos têm que que agir em conjunto, por exemplo, puxando cada um uma das pontas soltas de uma mesma corda, para ter acesso a uma fonte de alimento. Chimpanzés, macacos prego, corvos, hienas, orangotangos, elefantes, cães e lobos, focas, várias espécies de papagaios, todos passam em testes deste tipo, cooperando com colegas para a obtenção de alimento de outra forma inacessível. Mas tais experimentos podem ser de certa forma gerar falsos positivos. Por exemplo, macacos prego cooperam neste tipo de tarefa, mas não compreendem que estão cooperando, e o mesmo parece ocorrer com papagaios, corvos e focas; isto acontece, por exemplo, quando o animal aprende que aquele determinado instrumento só funciona na presença de outro indivíduo, uma aprendizagem relativamente simples que não garante que um animal entenda o papel do outro durante a cooperação.

E quanto a nossos sorridentes golfinhos, será que compreendem sua cooperação? Golfinhos têm alianças fantásticas: na defesa de seu território reprodutivo contra machos invasores, grupos de machos se aliam a outros grupos formando verdadeiras coligações suprapartidárias. São gangues de gangues, que perduram por mais de 20 anos expulsando gangues invasoras, ou mesmo invadindo territórios para ter acesso novas fêmeas reprodutivas. Além disso eles também caçam cooperativamente na natureza, mas permanece a questão: será que eles compreendem seus papéis recíprocos nestas atividades cooperativas? Para responder a isso, Kelly Jaakkola e seus colegas criaram uma seguinte tarefa: para conseguir acesso ao alimento, um golfinho teria que apertar um interruptor ao mesmo tempo, no mesmo segundo que seu colega apertasse outro interruptor. Assim, não bastaria saber que o aparato só funciona na presença de outro golfinho. Para ganhar acesso ao alimento o golfinho teria que monitorar o que o outro golfinho estava fazendo, dado que eles têm tinham que apertar o interruptor ao mesmo tempo. Para complicar, os pesquisadores soltavam o segundo golfinho até 20s depois do primeiro, de modo que o primeiro teria que esperar o segundo para ter sucesso. Os pares de golfinhos erravam bastante no começo, e havia diferenças dentro dos casais na velocidade de aprendizagem, mas ao final todos foram bem sucedidos, mesmo quando o segundo golfinho era liberado com atraso. Mais interessante foi perceber que, enquanto no início os golfinhos atrasados nadavam mais rápido para encontrar seu parceiro, ao final isso não acontecia mais: ao final o primeiro golfinho esperava tranquilamente pelo segundo. Mais que isso, nos primeiros sucessos o indivíduo atrasado sempre apertava o interruptor por último, enquanto nos últimos sucessos a ordem era aleatória, indicando novamente que havia uma compreensão acerca da complementaridade das tarefas. A coordenação entre os golfinhos foi melhorando significativamente, e ao final eles apertavam seus interruptores praticamente ao mesmo tempo (menos de 0,4s de diferença). Assim, se no início o sucesso se dava porque o indivíduo atrasado acelerava seu passo, indicando que não havia necessariamente uma compreensão da necessidade de coordenação, ao final o sucesso se dava porque o indivíduo adiantado esperava o atrasado, e o par apresentava sincronia muito mais precisa, indicando uma compreensão da necessidade de coordenação. Não seria possível tanta precisão (370 milisegundos no final do experimento) se os animais não compreendessem a cooperação, ou seja, se estivessem adotando uma estratégia genérica do tipo: aperte o interruptor se o outro indivíduo estiver próximo do outro interruptor. Esta estratégia genérica não requer que um indivíduo compreenda o que o outro indivíduo deve fazer. Mas para terem a precisão que alcançaram, os indivíduos teriam que monitorar visualmente o comportamento do outro indivíduo, e apertar o interruptor apenas quando o outro também estivesse apertando.

Ficamos assim mais livres para amar os golfinhos: eles parecem de fato entender que estão nos ajudando quando conduzem cardumes de peixes para nossas redes de pesca, ou quando socorrem banhistas que se afogam, ou mesmo quando formam suas coligações suprapartidárias de machos. Nestes conturbados tempos eleitorais, é bom sabermos que a política pode ter surgido no mar antes que na terra. Em tempos de crise, é sempre reconfortante saber que podemos pedir ajuda a nossos amigos golfinhos, marinheiros experientes na navegação de mares politicamente revoltos.

Hilton F. Japyassú (UFBA – Salvador/Bahia)

PARA SABER MAIS:

Stanford, C. B., Wallis, J., Matama, H., & Goodall, J. (1994). Patterns of predation by chimpanzees on red colobus monkeys in Gombe National Park, 1982–1991. American Journal of Physical Anthropology, 94(2), 213-228.

Boesch, C. (2002). Cooperative hunting roles among Tai chimpanzees. Human Nature, 13(1), 27-46.

Visalberghi E, Quarantotti BP, Tranchida F. 2000 Solving a cooperation task without taking into account the partner’s behavior: the case of capuchin monkeys (Cebus apella). J. Comp. Psychol. 114, 297–301.

Connor RC, Smolker R, Bejder L. 2006 Synchrony, social behaviour and alliance affiliation in Indian Ocean bottlenose dolphins, Tursiops truncatus. Anim. Behav. 72, 1371–1378.

Jaakkola, K., Guarino, E., Donegan, K., & King, S. L. (2018). Bottlenose dolphins can understand their partner’s role in a cooperative task. Proc. R. Soc. B, 285(1887), 20180948.

 

(imagem: pesca com golfinhos no município de Laguna)

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