Dois cérebros para pensar: a evolução da inteligência em aves e mamíferos

Assim como nós, primatas, algumas aves brincam, resolvem problemas, usam ferramentas, aprendem a cantar e se reconhecem no espelho. Este nível de sofisticação comportamental, ausente em outros animais, evoluiu independentemente nas linhagens das aves e dos mamíferos. Quais mudanças no cérebro estão subjacentes à sua evolução?

A complexidade comportamental de mamíferos e aves depende do aumento do tamanho do telencéfalo, a região anterior do cérebro. No caso dos mamíferos, depende também da evolução do neocórtex, uma grande região dorsal do telencéfalo organizada em capas de neurônios (Figura 1). As capas do neocórtex estão conectadas ordenadamente umas às outras, criando um circuito que associa e integra informações sensoriais que chegam no telencéfalo (Figura 1).

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Figura 1: Representação esquemática dos cérebros de um anfíbio, lagarto, ave e mamífero, mostrando o tamanho relativo do telencéfalo (em alaranjado). Abaixo, representação de cortes coronais do telencéfalo de uma ave e um mamífero, e seus respectivos circuitos telencefálicos.

Nas aves, no entanto, não existem capas no telencéfalo. Em 1969, Harvey Karten, hoje professor emérito da Universidade de Califórnia em San Diego (UCSD), propôs que o telencéfalo das aves possui um circuito que realiza atividades de associação e integração equivalentes às realizadas pelo neocórtex. Este circuito não estaria organizado em capas, mas em aglomerações de neurônios localizadas em diferentes regiões do telencéfalo.

A hipótese de Karten estimulou uma enorme quantidade de pesquisa, especialmente sobre as conexões dos sistemas sensoriais das aves. Porém, a análise das conexões no telencéfalo das aves é tecnicamente complexa, devido à distribuição dos neurônios em diferentes planos. Além disso, alguns dados da biologia do desenvolvimento parecem contrariar a hipótese, indicando que o neocórtex dos mamíferos é homólogo a uma pequena área dorsal do cérebro das aves. A controvérsia em relação à homologia do telencéfalo das aves e os mamíferos, ainda hoje vigente, tem sido chamada de “o problema mais espinhoso da neurobiologia comparada”.

Nos últimos anos, o laboratório de Clifton Ragsdale, na Universidade de Chicago, desenvolveu uma abordagem diferente para o problema. Ele decidiu determinar os subtipos celulares que ocupam diferentes regiões dos cérebros dos vertebrados terrestres. Primeiro, ele identificou fatores de transcrição que são produzidos exclusivamente por neurônios em cada uma das capas do cérebro de mamíferos (usando camundongos e furões como modelos). Depois, buscou identificar quais neurônios produzem estes fatores de transcrição no telencéfalo das aves (Figura 2). Posteriormente, comparou também a expressão destes genes no cérebro de tartarugas e, em um artigo publicado semana passada, jacarés – os parentes vivos mais próximos das aves.

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Figura 2: Exemplo mostrando a expressão de um fator de transcrição em regiões do telencéfalo de um embrião de galinha (esquerda) e em capas do córtex de um camundongo (direita). Modificado de Briscoe e colaboradores (2018).

Os dados do laboratório de Ragsdale mostram que certos aglomerados de células no telencéfalo das aves possuem subtipos celulares similares às capas do neocórtex que recebem, associam e projetam conexões. Usando uma metodologia totalmente diferente, os dados apoiam a hipótese de Karten e seus colaboradores, formulada a partir de estudos da conectividade dos neurônios no telencéfalo das aves.

O grande atrativo da hipótese de Karten é que ela oferece uma solução simples para um problema complicado. A chave para evolução de comportamentos tão complexos foi o estabelecimento de circuitos de integração senso-motora organizados topologicamente, não importando se estes neurônios estão organizados em capas ou aglomerados de células. Macacos e papagaios resolvem problemas usando cérebros diferentes, mas com circuitos neuronais equivalentes. No es lo mismo, pero es igual.

João F. Botelho & Macarena Faunes

(Yale University)

Para saber mais:

Ahumada‐Galleguillos, Patricio, et al. “Anatomical organization of the visual dorsal ventricular ridge in the chick (Gallus gallus): layers and columns in the avian pallium.” Journal of Comparative Neurology 523.17 (2015): 2618-2636.

Dugas-Ford, Jennifer, Joanna J. Rowell, and Clifton W. Ragsdale. “Cell-type homologies and the origins of the neocortex.” Proceedings of the National Academy of Sciences109.42 (2012): 16974-16979.

Dugas-Ford, Jennifer, and Clifton W. Ragsdale. “Levels of homology and the problem of neocortex.” Annual review of neuroscience 38 (2015): 351-368.

Karten, Harvey J. “The organization of the avian telencephalon and some speculations on the phylogeny of the amniote telencephalon.” Annals of the New York Academy of Sciences 167.1 (1969): 164-179.

Shimizu, Toru, Kevin Cox, and Harvey J. Karten. “Intratelencephalic projections of the visual wulst in pigeons (Columba livia).” Journal of Comparative Neurology 359.4 (1995): 551-572.

Foto de abertura: Montagem com fotos de um sagui de tufos-pretos (Callithrix penicillata) e um Kaka (Nestor meridionalis) – Fotos dos autores.

3 comentários em “Dois cérebros para pensar: a evolução da inteligência em aves e mamíferos”

  1. Me chamo Marcos Torres de Lima, sou aluno do Instituto Federal da Bahia – Campus Salvador, achei interessante esse artigo , que não sabia como funcionava esse mecanismo da inteligência na evolução e através desse arvigo consegui compreender o seu funcionamento e como ele acontece em aves e mamíferos

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