Besouros da subfamília Scarabaeinae (Coleoptera: Scarabaeidae) são popularmente conhecidos como escaravelhos ou rola-bostas, uma referência ao hábito de remover e manipular, em formato esférico, porções das fezes de mamíferos. Essas “bolas” de massa fecal são transportadas e enterradas em ninhos ou galerias cavadas pelos próprios rola-bostas, que as utilizarão para nidificação e alimentação de larvas e adultos (veja figura abaixo).
Ao observarem esse comportamento, associado à emersão de indivíduos jovens, os egípcios antigos passaram a utilizar escaravelhos como símbolos da ressureição, usando-os como amuletos e também esculpindo-os em tumbas e sarcófagos de grandes faraós. Ainda com relação à ideia de ressurreição, os egípcios acreditavam que o Sol nascia e morria todos dias e que uma das formas do Deus Sol, Khepri, se transformava em um besouro rola-bosta, a fim de “rolar” o Sol de um lado (nascimento, nascer-do-sol) para o outro (morte, pôr-do-sol). Apesar de claramente não estarem relacionados ao movimento da Terra em relação ao Sol, besouros rola-bostas possuem uma relação interessante com nossa galáxia, uma vez que são os primeiros animais conhecidos por usar a Via Láctea para orientação, inclusive sob condições de pouca visibilidade, como foi mostrado por Marie Dacke e colaboradores, em 2013, por meio de mecanismos elucidados por James J. Foster e colegas, em 2017.

Por utilizarem matéria orgânica em decomposição na alimentação de larvas e adultos, os rola-bostas atuam em diversos serviços ambientais de grande importância econômica e ecológica, como, por exemplo: controle de pragas e parasitas, bioturbação (mistura sedimentar causada por atividade biológica), dispersão secundária de sementes, ciclagem de nutrientes e até mesmo no aumento da biomassa de plantas, pela maior disponibilidade de nutrientes no solo após o manejo de matéria orgânica por rola-bostas (as funções ecológicas dos rola-bostas são discutidas por E. Nichols e colaboradores, em artigo de 2008). Além disso, esses besouros auxiliam na redução de gases contribuintes para o efeito estufa em pastagens e são considerados bioindicadores de conservação ambiental (Halffter & Favila, 1993), motivo pelo qual são usados em estudos para avaliação de riscos gerados pela perda da biodiversidade no mundo.
Um dos maiores problemas em pastagens é o acúmulo de esterco, que além de impossibilitar o crescimento de pasto na região afetada, faz parte do ciclo de vida de pragas conhecidas como “moscas-do-chifre“. Ao enterrarem o esterco em galerias cavadas no solo, os rola-bostas impossibilitam a proliferação das moscas-do-chifre e auxiliam na manutenção e recuperação do pasto, por tornar disponível a área antes ocupada por fezes, aumentar a aeração do solo e também propiciar maior disponibilidade de nutrientes. Considerando o valor que seria gasto em controle de pragas e recuperação de pastagens nos EUA, os benefícios gerados por besouros rola-bostas foram estimados em 380 milhões de dólares em 2008 (como discutido por E. Nichols e colegas) e é provável que esse valor seja ainda maior nos dias atuais. Em alguns países, casais de espécies exóticas de rola-bostas são comercializados para o manejo de esterco e pragas em pastagens extensivas, como Austrália e Nova Zelândia, que criaram programas de pesquisa para avaliar a viabilidade da introdução de espécies exóticas sem que estas prejudicassem a fauna nativa. Atualmente existem, inclusive, selos de qualidade que certificam a produção de leite e carne orgânica com base na diversidade de besouros rola-bostas encontrados no esterco depositado nas pastagens, uma vez que o gado criado de forma natural e orgânica produz fezes livres de hormônios e vermicidas, que não causam a mortalidade precoce das larvas de rola-bostas.
Por serem extremamente sensíveis à degradação do meio ambiente, estudos para a avaliação de conservação ambiental têm cada vez mais utilizado besouros rola-bostas como bioindicadores. Alguns resultados desses estudos apresentam sérias consequências causadas por distúrbios ambientais. Na Amazônia, por exemplo, a abundância de espécies de besouros rola-bostas é significativamente reduzida em até 200m de distância de estradas abertas para exploração de madeira (como evidenciado por Felicity A. Edwards e colaboradores, em 2017). Além disso, existe atualmente uma preocupação quanto aos métodos tradicionalmente utilizados para a avaliação dos impactos ambientais causados pela extração de madeira em regiões amazônicas que, como foi mostrado por Filipe França e colegas, em 2016), têm subestimado a perda da diversidade local de espécies de Scarabaeinae. Outro estudo de Filipe França e colaboradores, do mesmo ano, revelou que besouros rola-bostas sofrem estresse fisiológico em áreas de exploração madeireira, por um grande acúmulo de gordura corporal após o corte seletivo de madeira, possivelmente devido a uma tentativa de reservar energia para períodos críticos de escassez alimentar.
Uma das maiores causas do desmatamento de florestas é a criação de áreas abertas para plantação de pasto e, apesar de existirem tentativas de manter fragmentos florestais entre essas pastagens, um estudo revelou que a riqueza e abundância de espécies de rola-bostas nessas áreas é reduzida drasticamente, mesmo que sejam adjacentes às áreas florestais (como mostrado por Ricardo J. Silva e colegas, em 2016). Mesmo que a tentativa de recuperar pastos degradados, transformando-os em áreas florestais restauradas, seja uma boa estratégia para amenizar os danos causados pelo desmatamento, Lívia Dorneles Audino e colegas mostraram, em 2014, que 18 anos não foram suficientes para a restauração da diversidade funcional e específica de besouros rola-bostas no sul da Bahia. Esses dados são extremamente relevantes para que possamos discutir os efeitos da degradação ambiental a curto e longo prazo, considerando que o tempo para a recuperação de áreas afetadas possa ser muito maior do que o esperado.
A grande diversidade de espécies em Scarabaeinae possibilita que estudos como estes sejam desenvolvidos em diversas partes do mundo, especialmente no Brasil, que possui um grande número de pesquisadores trabalhando em Taxonomia, Ecologia e Conservação de besouros rola-bostas. São conhecidas, atualmente, cerca de 6200 espécies de Scarabaeinae classificadas em 270 gêneros, porém pesquisadores acreditam que cerca de 30-50% das espécies existentes nesse grupo ainda não foram descritas (dados pessoais de François Génier, encontrados em artigo escrito por este autor com Sergei Tarasov). No Brasil, segundo o Catálogo Taxonômico da Fauna Brasileira, já foram registradas 725 espécies de Scarabaeinae classificadas em 63 gêneros, e novas espécies são descobertas frequentemente, no mês passado quatro espécies novas foram descritas por Marcely C. Valois e colaboradores, por exemplo.
Em um cenário repleto de distúrbios ambientais e desmatamento de florestas nativas, a preservação das espécies de besouros rola-bostas no Brasil e no mundo torna-se urgente e, para isso aconteça, precisamos primeiramente saber quantas espécies existem, onde elas ocorrem e quais são as condições fundamentais para que seja possível a manutenção e completude de seus ciclos de vida. Caso contrário, o que nos restará será uma grande quantidade de bosta para resolver.
Maria Eduarda Maldaner (Universidade Federal de Mato Grosso)
Para saber mais:
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Santos-Heredia, C.; Andresen, E.; del-Val, E.; Zarate, D.A.; Mendoza, M.N.; Jaramillo, V.J. (2016). The activity of dung beetles increases foliar nutrient concentration in tropical seedlings. Biotropica, 48(5): 565–56.
Slade, E.; Riutta, T.; Roslin, T.; Tuomisto, H.L. (2016). The role of dung beetles in reducing greenhouse gas emissions from cattle farming. Scientific Reports, 6: 18140. doi:10.1038/srep18140.
Hammer, T.J.; Fierer, N.; Hardwick, B.; Simojoki, A.; Slade, E.; Taponen, J.; Viljanen, H.; Roslin, T. (2016). Treating cattle with antibiotics affects greenhouse gas emissions, and microbiota in dung and dung beetles. Proc. R. Soc. B., 283: 20160150.
Beiroz, W.; Slade, E.M.; Barlow, J.; Silveira, J.M.; Louzada, J.; Sayer, E. (2017). Dung beetle community dynamics in undisturbed tropical forests: implications for ecological evaluations of land‐use change.Insect Conservation and Diversity, 10(1): 94–106.
Halffter, G. (1991). Historical and ecological factors determining the geographical distribution of beetles (Coleoptera: Scarabaeidae: Scarabaeinae).Biogeographia, 15: 11–40. doi: 10.21426/B615110376.
Nichols, E. & Gardner, T.A. (2011). Dung beetles as a Candidate Study Taxon in Applied Biodiversity Conservation Research. In: Simmons, L.W. & Ridsdill-Smith, J. (eds.), Dung Beetle Ecology and Evolution. Wiley-Backwell.
Fonte da Imagem de abertura.
Eu achei muito boa a sua pesquisa estou estudando para ser bióloga veterinária e amo esses tipos de pesquisas amei tá de parabéns
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