Quando falamos em fogo e meio ambiente, logo pensamos em destruição de habitat, morte de animais e plantas e até mesmo extinção de espécies. E não é para menos. No ano de 2016, o INPE detectou, através do seu sistema de monitoramento de incêndios florestais por meio de imagens de satélite (mais especificamente o NOAA-15), mais de 164.000 (cento e sessenta e quatro mil) focos de incêndio apenas no Brasil. Além da destruição ambiental, os incêndios florestais liberam para a atmosfera uma quantidade significativa de gás carbônico. Foi estimado que cerca de 50% do material queimado seja convertido em gases de efeito estufa, que dificultam (ou impedem) a dispersão da radiação solar refletida pela Terra e resultando em um aumento da temperatura atmosférica global. No ranking mundial, o Brasil está entre os principais países emissores desses gases e a modificação do uso da terra, decorrente do desmatamento de florestas para sua conversão em áreas de pastagem ou agricultura, é o principal fator, contribuindo com até 70% do total de emissões do país.
O último relatório do Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas, publicado em 2014 (International Panel on Climate Change 2014), não deixa dúvidas de que há uma grande probabilidade de aumento no número de queimadas e outros eventos climáticos extremos, resultante do aumento das temperaturas globais. Entramos, então, em um ciclo de retroalimentação positiva, no qual o aumento de queimadas aumenta a liberação de gases de efeito estufa para a atmosfera, resultando em elevação das temperaturas globais, o que, por sua vez, aumenta a frequência de queimadas (Nitschke & Innes 2006).
Habituamo-nos, enfim, a entender o fogo como algo destrutivo, e frequentemente associado à atividade humana. Mas a forma como o fogo afeta a composição biológica de um dado ecossistema é complexa e depende de um grande número de fatores bióticos e abióticos. Dessa forma, o impacto do fogo na biodiversidade pode ser muito variável e, por vezes, inesperado. Por exemplo, há muito sabemos que o impacto do fogo nos ecossistemas depende, em grande medida, da intensidade e da frequência de ocorrência das queimadas. Queimadas intensas, com ciclos muito longos (ocorrendo em intervalos de tempo superiores a 100 anos), frequentemente resultam em profundas alterações nos ecossistemas, como as que ocorrem nas florestas boreais. Por sua vez, queimadas de baixa severidade e de ciclos mais curtos (inferiores a 20 anos) tendem a produzir pouco impacto na composição do ecossistema, como o que ocorre em florestas das regiões mediterrâneas (Chandler et al. 1983).
No Brasil, o cerrado é um desses ecossistemas em que o fogo tem um importante papel. Nesse ambiente, está claro que o fogo pode influenciar o processo evolutivo, gerando alterações na composição das espécies e nas interações entre espécies animais e vegetais. Neste ecossistema de solos frequentemente pobres, o fogo atua, também, disponibilizando nutrientes, na forma de cinzas. Muitas das espécies presentes no cerrado são tolerantes ao fogo, apresentando adaptações que as permitem sobreviver a diferentes regimes de queimada. Por exemplo, muitas espécies de plantas apresentam sistemas subterrâneos de caules e raízes bem desenvolvidos, que acumulam reservas de nutrientes, assim como abrigam gemas que possibilitam a rebrota após o fogo. Muitas espécies vegetais apresentam, também, caules espessos, que atuam como escudo protetor dos tecidos vivos, mais internos, da planta.
Os diferentes regimes de fogo observados no cerrado (queimadas frequentes, anuais ou bianuais; e queimadas mais esparsas, com ciclos a cada 10 a 12 anos) resultam em diferentes respostas das comunidades locais. Em locais com queimadas frequentes, encontramos a predominância de uma comunidade vegetal que apresenta traços de tolerância ao fogo, redução da biomassa vegetal e enriquecimento do solo, enquanto que em locais com ciclos mais longos, os solos são mais pobres, há uma maior competição entre as espécies com predominância de algumas espécies dominantes e o grande acúmulo de biomassa vegetal seca frequentemente resulta em incêndios catastróficos (Silva et al. 2011). Nesse sentido, cada vez mais a conservação de ecossistemas como o cerrado, assim como da sua diversidade, passa pelo manejo adequado do fogo. Portanto, em algumas regiões, o manejo do fogo, ou seja, a realização de queimadas de pequeno porte, controladas e planejadas, pode evitar grandes incêndios e, em alguns casos, estimular a manutenção da biodiversidade local (Knapp et al. 2009; Fidelis & Pivello 2011).

Com o acúmulo de estudos a respeito do papel dos diferentes regimes de fogo na evolução de ecossistemas terrestres (como , por exemplo Feurdean et al 2017), hoje percebemos que muitas espécies de animais e plantas requerem o fogo para sua sobrevivência e que o manejo adequado do fogo é fundamental para a conservação desses ecossistemas (Kelly & Brotons 2017). Assim, um novo campo de estudo se consolida: A Ecologia do Fogo (do inglês, Fire Ecology) (Figura 2), voltado ao entendimento dos efeitos dos diferentes regimes de fogo na evolução dos ecossistemas terrestres.
Recentemente, um estudo dos efeito regionais e locais do aumento da frequência de queimadas em populações do pinheiro Pinus halepensis (Figura 3) apresentou resultados interessantes, que apoiam a ideia de que, em certas comunidades, o fogo pode atuar como agente de seleção natural. Populações naturais de Pinus halepensis, tanto de regiões expostas a queimadas frequentes quanto de regiões com queimadas menos frequentes, tiveram o seu material genético sequenciado, ou seja, as sequências de nucleotídeos de seus DNAs foram decifradas. Apesar da ausência de diferenças significativas na diversidade genética entre as populações submetidas aos diferentes regimes de fogo, determinados traços genéticos encontravam-se marcadamente diferentes entre as populações expostas a fogo frequente, sugerindo que há seleção atuando no nível regional. É possível que, frente às mudanças climáticas esperadas, e o consequente aumento da frequência de queimadas, essas modificações genéticas, observadas apenas nas populações submetidas a um regime de fogo frequente, podem alterar os padrões de seleção natural em populações de P. halepensis, e, acreditam os autores, de outras espécies com ciclo de vida semelhante.
Figura 2: Pinus halepensis (pinheiro de allepo) (Fonte: The Gymnosperm Database).
Dadas as relações complexas entre fogo e biodiversidade, muitos outros estudos ainda precisam ser conduzidos para que entendamos mais profundamente os efeitos do fogo na promoção da biodiversidade, assim como as maneiras adequadas de manejo do fogo nos diferentes ecossistemas. Como sugerem alguns autores, a pirodiversidade deve ser entendida no contexto ecológico em que a biodiversidade é inserida nos regimes de fogo de cada rede trófica. Independente da sua abordagem, no entanto, o papel do fogo na evolução dos ecossistemas terrestres e na promoção da biodiversidade em alguns ecossistemas é nada mais do que os dois lados de uma mesma moeda.
Ana Almeida (UFBA)
Para saber mais:
Bowman, D.M.J.S.; Murphy, B.P. 2010. Chapter 9: Fire and Biodiversity. IN: Sodhi and Ehrlich (eds.) Conservation Biology for All. Oxford University Press.
Gill, A. M. 2002. How fires affect biodiversity. Center for Plant Biodiversity Research, Australian Government Initiative.
Pausas, J.G.; Schwilk, D. 2012. Fire and plant evolution. New Phytologist, 193: 301-303.
Pausas, J.G. 2015. Evolutionary fire ecology: lessons learned from pines. Trends in Plant Science, 20(5): 318-324.
Robinson, N.M.; Leonard, S.W.J.; Ritchie, E.G.; Basset, M.; Chia, E.K.; Buckingham, S.; Gibb, H.; Bennet, A.F.; Clarke, M.F. 2013. Refuges for fauna in fire-prone landscapes: their ecological function and importance. Journal of Applied Ecology, 50: 1321-1329.
Thom, D.; Seidl, R. 2016. Natural disturbance impacts on ecosystem services and biodiversity in temperate and boreal forests. Biological Reviews, 91: 760-781.
Figura de abertura: Incêndio de grandes proporções em floresta de pinheiros nos Estados Unidos. (Fonte: USDA Synthesis of knowledge of Extreme Fire Behaviour: Volume I for Fire Managers. 2011. Rick Trembath, USDA Forest Service)
Muito pertinente! Parabéns, adorei saber um pouco mais sobre este assunto.
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Obrigada, Jozilene. Fico feliz em saber que curtiu o texto. Abs.
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