Para onde vão as andorinhas? Seguindo aves viajantes

Muitas aves se reproduzem em um local e, durante o outono e inverno, percorrem longas distâncias em busca de alimento em regiões onde as condições são mais favoráveis. Conheça um pouco mais sobre esse fenômeno fascinante, e como seu estudo pode conectar cientistas e cidadãos em ações de conservação e produção de conhecimento.

Migração do ganso da cara branca (Branta leucopsis) durante o outuno na Finlândia. Thermos – Own work, CC BY-SA 2.5, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1387483

A vida na Terra é regida por ciclos, dos nutrientes que circulam pelos ecossistemas, das alternâncias entre dia e noite, e das estações que se repetem anualmente. Esses ciclos funcionam como um calendário natural para diversas espécies que realizam movimentos sazonais, ou seja, deslocamentos que ocorrem em períodos específicos do ano e se repetem regularmente. Na biologia, chamamos esses movimentos de “migração”. Eles são realizados por espécies que se reproduzem em um local e, durante o outono e inverno, percorrem longas distâncias em busca de alimento em regiões onde as condições são mais favoráveis à sobrevivência.

Esses movimentos sempre fascinaram sociedades humanas, que observavam a chegada e partida das aves como sinais de mudanças no clima e, muitas vezes, como marcadores do calendário agrícola. Para os Kawaiweté, povo indígena do Xingu, a chegada das andorinhas anuncia o início da temporada de chuvas. Com o avanço do desmatamento e a consequente alteração no regime de chuvas, a presença e o número dessas aves avistadas vem mudando, revelando como mudanças ambientais afetam diretamente as migrações. Afinal, para onde as aves vão e por que partem são perguntas tão antigas quanto a própria relação humana com a natureza.

Na Grécia antiga, Aristóteles propôs uma teoria curiosa: acreditava que algumas aves desaparecidas no inverno se transformavam em outras espécies. Já durante a Idade Média, imaginava-se que andorinhas hibernavam no fundo de lagos congelados. O mistério só começou a ser desvendado séculos depois e, de certa forma, junto com outra lenda famosa: a de que cegonhas traziam bebês.

A crença estava relacionada à migração da cegonha-branca (Ciconia ciconia). Na Idade Média europeia, muitos casamentos aconteciam no início do verão. Na sequência, no início do outono, as cegonhas desapareciam e retornavam aproximadamente nove meses depois da temporada de casamentos, coincidindo com o nascimento de muitas crianças. A associação se popularizou por gerações. Até que, em 1822, algo incomum apareceu em um telhado da pequena cidade de Klütz, na Alemanha: uma cegonha com uma flecha atravessando o pescoço. Análises da origem da madeira da flecha confirmaram que ela havia viajado pelo menos 2.000 km entre a Europa e a África, e assim a compreensão moderna sobre migração ganhou um marco histórico.

A Cegonha flechada de Klütz, hoje preservada na Universidade de Rostock. A palavra em alemão Pfeilstorch (“cegonha-flecha”) foi criada para designar estes animais que chegavam à Europa atingidos por flechas ou lanças. Desde 1822, cerca de 23 desses casos foram registrados na Alemanha. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Pfeilstorch, foto do Zoologische Sammlung der Universität Rostock.

Décadas depois, em 1890, o dinamarquês Hans Mortensen inaugurou a marcação de aves com anilhas, permitindo conhecer rotas migratórias, longevidade e conectividade populacional. O método é amplamente utilizado até hoje, embora dependa de grande esforço de captura e recaptura. A partir de meados dos anos 1980, o surgimento de dispositivos que estimam posição pela luminosidade, radiotransmissores, e, posteriormente, de rastreadores GPS cada vez menores trouxe uma revolução aos estudos de migração, permitindo acompanhar trajetos completos inclusive de aves pequenas, como as andorinhas.

Existem cerca de 88 espécies de andorinhas no mundo, 18 delas no Brasil, todas apresentando algum tipo de movimento migratório. Seis espécies se reproduzem no Hemisfério Norte e chegam à América do Sul durante a nossa primavera e verão. No Brasil, andorinhas fazem parte do imaginário popular e aparecem frequentemente em praças e fiações elétricas, formando bandos expressivos e revoadas marcantes que, junto com as suas chegadas e partidas, inspiraram versos como os do Trio Parada Dura: “Nós somos andorinhas que vão e que vêm… Uma andorinha voando sozinha não faz verão”.

Bando de andorinhas-azuis (Progne subis) em Linhares, ES, Brasil. Foto: Gabriel Bonfá.

Há sete anos estudo uma dessas espécies, a andorinha-azul (Progne subis), observando os bandos que chegam ao Brasil entre setembro e abril. Conversando com moradores, percebo sempre dois pontos: encantamento com as revoadas ao amanhecer e entardecer, mas também incômodo com o barulho e o acúmulo de fezes nas áreas onde dormem; e a dúvida comum: “De onde elas vêm?”. A andorinha-azul se reproduz no sul do Canadá, nos Estados Unidos e no norte do México, mas passa a estação não reprodutiva praticamente em todo o território brasileiro. Um dos objetivos centrais da minha pesquisa é conectar cada região do Brasil às populações do Hemisfério Norte, muitas vezes separadas por dezenas de milhares de quilômetros.

Para compreender esses movimentos, é essencial conhecer a biologia da espécie. As andorinhas-azuis são divididas em três subespécies, isoladas geográfica e reprodutivamente, que diferem na distribuição, no tipo de ninho utilizado e em aspectos morfológicos sutis:

  • A subespécie do leste, a mais estudada, usa ninhos artificiais em jardins da metade leste dos EUA e Canadá. A facilidade de captura e recaptura permitiu rastrear centenas de indivíduos via GPS, revelando que passam o período não reprodutivo principalmente na Amazônia, onde formam imensos dormitórios com até 500 mil aves.
  • A subespécie do oeste nidifica em cavidades de árvores ao longo da costa oeste, do Canadá à Califórnia. Poucas populações utilizam ninhos artificiais e, por isso, poucas aves foram rastreadas, mas sabemos que aparecem durante a migração no litoral do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia.
  • A subespécie do deserto utiliza ocos de cactos no deserto de Sonora (Arizona, Califórnia e noroeste do México). É a menos conhecida: seu destino migratório permaneceu um mistério até 2023, quando um indivíduo foi rastreado até o Nordeste do Brasil.

A facilidade de recapturar os mesmos indivíduos no leste da América do Norte permitiu o uso de dispositivos de rastreamento que funcionam como discos de memória, nos quais os dados só podem ser acessados quando a ave retorna ao mesmo ninho e o dispositivo é retirado. Já nas outras subespécies, esse processo é muito mais desafiador: além de ocuparem cavidades naturais em árvores altas ou ocos de cactos no deserto, locais de difícil acesso, essas populações são menos gregárias durante a reprodução, o que reduz as chances de capturar e, principalmente, recapturar os mesmos indivíduos. No Brasil é relativamente fácil capturar andorinhas nos imensos bandos que se formam para dormir, mas é praticamente impossível reencontrar no ano seguinte o mesmo indivíduo para recuperar dispositivos. Nos últimos anos, surgiram transmissores que enviam dados em tempo real via satélite, porém, até 2021, eles ainda eram pesados demais para serem usados em aves tão pequenas.

Isso mudou quando um novo rastreador de apenas 2 g se tornou disponível e em 2025, um marco tornou essa conexão ainda mais clara: cinco andorinhas-azuis foram equipadas com transmissores via satélite em um grande dormitório de Linhares, permitindo acompanhar em tempo real suas trajetórias migratórias até o Novo México, a Califórnia e a Colúmbia Britânica. Esses avanços têm revelado rotas, gargalos ecológicos e diferenças entre subespécies, abrindo caminho para um mapa cada vez mais detalhado e preciso da presença e dos movimentos da espécie no Brasil.

Andorinha-azul (Progne subis) com rádiotransmissor no dorso. Foto: Dado Galdieri/Hilaea Media

A conservação da andorinha-azul depende diretamente da colaboração entre pesquisadores e comunidades locais. Em muitas cidades brasileiras, essas aves dormem em praças e áreas urbanas, o que gera conflitos, mas que pode levar a medidas inadequadas, como podas ou remoção de árvores usadas como dormitórios. Ao mesmo tempo, plataformas de ciência cidadã como eBird, WikiAves e observações diretas de moradores permitem localizar bandos rapidamente, registrar datas de chegada e partida e monitorar mudanças ao longo dos anos. Esses dados são fundamentais especialmente diante das mudanças climáticas, que já vêm alterando padrões de chuva e disponibilidade de insetos, afetando a sobrevivência das aves durante sua estadia no Brasil. Assim, a participação da população é essencial para transformar potenciais conflitos em oportunidades de convivência e proteção.

A migração das aves não reconhece fronteiras, e a conservação também não pode reconhecê-las. Proteger espécies que viajam milhares de quilômetros exige redes de cooperação entre pesquisadores, instituições, comunidades e governos. Projetos que conectam diferentes países e continentes são essenciais para mapear rotas completas, compartilhar dados de rastreamento, comparar ameaças regionais e alinhar ações de conservação. Cada recaptura, cada nova marcação e cada dormitório monitorado são peças de um esforço global para compreender as aves viajantes.

Clarissa Santos
Mestre em ecologia pela Universidade Federal de São Carlos, aluna de doutorado em ecologia pela Universidade de São Paulo.

PARA SABER MAIS

Projeto Andorinha-azul: iniciativas de pesquisa que estudam migração, saúde das aves, uso de habitat e conectividade entre Brasil e América do Norte. andorinhaazul.org, Instagram: @andorinhazul

Purple Martin Conservation Association: ONG norte-americana que une educação ambiental, ciência cidadã e pesquisa para a conservação da andorinha-azul.

Plataformas de ciência cidadã:

eBird – banco de dados global e colaborativo de observações de aves

WikiAves – principal repositório de registros fotográficos e sonoros da avifauna brasileira.

Por que coproduzir inovações agroecológicas com os agricultores?

Como um estudo participativo com fruticultores exportadores, pesquisadores e comerciantes do Brasil, Chile e Reino Unido desenvolveu inovações agroecológicas para aumentar a sustentabilidade e reduzir o impacto sobre a biodiversidade.

A intensificação e a expansão agrícola são os principais fatores relacionados à crescente perda global de biodiversidade observada neste século. Esse fenômeno é relevante e impacta países do sul global, incluindo os da América do Sul, que se destacam na produção agropecuária e exportação de commodities. Neste contexto, o plano Global da Biodiversidade apoia a adoção de inovações agroecológicas para reduzir os impactos da agricultura sobre a biodiversidade. As inovações agroecológicas são práticas recentemente introduzidas nos sistemas de manejo agrícola que possuem o potencial de favorecer, em paisagens agrícolas e a longo prazo, a biodiversidade e os benefícios que ela promove em áreas cultivadas.
Para que tais esforços sejam eficazes é preciso que os agricultores estejam preparados e motivados a desenvolver inovações agroecológicas que se adequem a sistemas produtivos e eficientes, que ajudem a minimizar o uso de terras para a produção de alimentos. Também é preciso que os agricultores estejam engajados e empoderados para adotar tais inovações, de modo a vislumbrar oportunidades diante do cenário político global e de alguns incentivos de mercados internacionais, a exemplo do mercado europeu. No entanto, as ações de cima para baixo que incentivam a sustentabilidade são insuficientes, ou sucumbem diante do contexto sistêmico que favorece modelos de produção intensivos.

De modo a entender como promover a participação ativa de agricultores convencionais de grande e médio porte, o projeto Manejo Sustentável de Fruteiras na Caatinga – SUFICA (www.sufica.org), utilizou a abordagem transdisciplinar e participativa descrita em estudo publicado recentemente. O nosso modelo de coprodução de conhecimento (Figura 1) ilustra como a investigação transdisciplinar pode permitir aos agricultores do Sul global envolverem-se na conservação da biodiversidade e produção sustentável em fazendas de fruticultura.

Figura 1: Modelo hierárquico em três níveis ilustrando a relação entre o mercado global de alimentos e a emergência de inovações agroecológicas. Essas inovações são testadas pelos agricultores, sob as regulamentações, restrições, oportunidades e incentivos do mercado global de alimentos (nível superior). O processo participativo, envolvendo agricultores, representantes da indústria de alimentos, e pesquisadores, exercem papel crucial na tomada de decisão sobre a adoção das práticas agroecológicas na agricultura (nível focal). Dentro do “espaço iterativo” (nível inferior) ocorre a coprodução de conhecimento pelos agricultores, representantes da industria de alimentos e pesquisadores, conduzindo ao desenvolvimento, implementação e usabilidade das inovações agroecológicas. Este processo de baixo para cima (bottom-up mechanism) promove a emergência de inovações agroecológicas com base cientifica e de fácil implementação (Adaptado de Salthe, 2010, 2012; Rocha & Rocha, 2018). Imagem desenhada por Germana Gonçalves de Araujo. Fonte: https:// doi.org/10.1002/pan3.10613

Durante o estudo, desenvolvido durante quatro anos, contamos com a participação de 14 agricultores, abrangendo uma área significativa ocupada por fruticultura intensiva (por exemplo, uva de mesa, manga e cereja) voltada, principalmente, para a exportação. Todos os agricultores estavam pressionados por compradores internacionais, especialmente da União Européia, a apresentarem ações voltadas à conservação da biodiversidade. Nosso estudo se concentrou em áreas com elevada biodiversidade, afetadas pela perda de habitat, situadas em região mediterrânea no Chile e de floresta tropical seca (Caatinga) no Brasil.

Os agricultores colaboraram ativamente com os pesquisadores e representantes da indústria, em um processo iterativo de diálogo e grupo de trabalho. Os agricultores participaram de todas as etapas do estudo, com diferentes niveis de participação, desde consultivo até a coprodução das inovações agroecológicas. Após avaliarem as evidências da Conservation Evidence (2023)1  e a experiência local, três inovações agroecológicas foram escolhidas: cultivo de cobertura, faixas com plantas nativas, e poleiros para aves. Estas inovações, priorizadas pelos produtores entre outras opções listadas (Figura 2), foram implementadas por nove produtores (apesar da Covid!).

Figura 2: Inovações agroecológicas implementadas nas fazendas. Poleiros para aves usado pela espécie alvo: (a) “gavião” (Parabuteo unicinctus) fotografado com armadilha de camera no Chile; (b) “carcará” (Caracara plancus) fotografado por um produtor no Brasil; (c) cultivo de cobertura entre as linhas do vinhedo no Brasil e (d) faixa de planta nativa no Chile. Créditos da fotos: (a,d) Nadia Rojas- Arévalo, (b) agricultor participante anônimo, (c) Patricia Oliveira-Rebouças. Fonte: https://doi.org/10.1002/pan3.10613

Nós conduzimos uma série de atividades ao longo de quatro anos, tais como oficinas participativas presenciais, em grupo e individuais, e também realizamos conversas via online, para manter a comunicação e compartilhar boas práticas, visando superar os desafios impostos pela distância geográfica e diversidade de participantes. Por meio dessas atividades conseguimos aumentar progressivamente o nível de participação, de modo que alguns agricultores engajados realizaram o monitoramento ativo da efetividade das práticas e sugeriram adaptações adequadas às suas condições particulares. As inovações agroecológicas implementadas foram mantidas após a finalização do projeto, pois ao menos uma delas foi adotada por oito dentre nove fazendas. Os agricultores relataram que a principal motivação para manter as práticas foi seu alinhamento com o sistema de manejo das fazendas e por poderem ser reconhecidas como atitude positiva à conservação da biodiversidade em sua cadeia produtiva. Além das práticas testadas neste estudo, o processo participativo disponibilizou uma lista de práticas agroecológicas, selecionada com base em evidência científica, adequação ao contexto e com boa relação custo-benefício (Conservation Evidence, 2023) que podem ser testadas em fazendas de fruticultura de regiões semiáridas de países da América do Sul, visando impulsionar a transição para um modelo de agricultura amigável à biodiversidade na região.

Ao longo da pesquisa, desenvolvemos juntos um conjunto amplo de recursos para a disseminação do conhecimento gerado a tomadores de decisão e compradores influentes localmente, os quais podem atuar como facilitadores do conhecimento e ampliar o alcance do conhecimento gerado localmente. Estes recursos incluem uma métrica de sustentabilidade online, uma série com seis cartilhas, que estão disponíveis, acessíveis e traduzidas para o idioma dos participantes, e vídeos (por exemplo, https://zenodo.org/records/10070493 ).

A nossa experiência com a realização deste projeto participativo com os agricultores evidenciou que as inovações agroecológicas têm mais chances de serem usadas quando selecionadas pelos agricultores. A partir dos resultados deste estudo, destacamos a importância de abordagens de pesquisa transdisciplinar que enfatizam a coprodução de conhecimento de base local e a colaboração entre várias partes interessadas. Sugerimos que esforços de baixo para cima para impulsionar a sustentabilidade devem ser priorizados em relação aos esforços de cima para baixo. Defendemos que as abordagens de base local podem beneficiar estratégias de cima para baixo, tais como incentivos de mercado, códigos voluntários ou regulamentações comerciais na agricultura, contribuindo para alcançar maior eficácia e promover a transição agroecológica2. Também destacamos que as partes interessadas, ligadas à produção agrícola e à indústria alimentar, podem se beneficiar de trabalhos em parceria com pesquisadores locais.

Fabiana Oliveira da Silva
Departamento de Educação em Ciências Agrárias e da Terra, Universidade Federal de Sergipe – UFS


Eduardo C. Arellano
Facultad de Agronomía y Sistemas Naturales e Instituto para el Desarrollo Sustentable, Pontificia Universidad Católica de Chile/ Center of Applied Ecology and Sustainability – CAPES


Blandina Felipe Viana
Universidade Federal da Bahia – UFBA

Vini Gbami Silva Ferreira
Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF

Patricia L. Oliveira Rebouças
Departamento de Tecnologia e Ciências Sociais, Universidade do Estado da Bahia – UNEB Campus III

Nadia Rojas-Arévalo
Department of Earth and Environmental Sciences, Faculty of Science and Engineering, University of Manchester

Andrés Muñoz- Sáez
Departamento de Producción Agrícola, Facultad de Ciencias Agronómicas, Universidad de Chile

Valentina P. Jimenez
Center of Applied Ecology and Sustainability

Natalia B. Zielonka
Durrell Institute of Conservation and Ecology, University of Kent and School of Biological Sciences, University of East Anglia

Liam P. Crowther
School of Biological Sciences, University of East Anglia)

Lynn V. Dicks
Department of Zoology, Conservation Research Institute, University of Cambridge

PARA SABER MAIS

Oliveira da Silva, F., Arellano, E. C., Felipe Viana, B., Silva-Ferreira, V., Oliveira-Rebouças, P., Rojas-Arévalo, N., Muñoz-Sáez, A., Jimenez, V. P., Zielonka, N. B., Crowther, L. P., & Dicks, L. V. (2024). Co-production of agroecological innovations to improve sustainability in South American fruit farms. People and Nature, 00, 1–16. https://doi.org/10.1002/pan3.10613

NOTAS

  1. Conservation Evidence (www.conservationevidence.com) é um recurso disponível online, gratuito e confiável, que permite o acesso fácil a ainformações mais recentes e relevantes , criado para apoiar decisões sobre como manter e restaurar a biodiversidade global. Fornece evidências e uma avaliação dessas evidências, que devem ser interpretadas por conservacionistas que compreendam seu próprio local e a situação nacional ou regional. ↩︎
  2. Processo em que sistemas produtivos convencionais da agricultura moderna, passam gradualmente a adotar princípios e tecnologias de base ecológica, tornando-se agroecossistemas mais sustentáveis. (https://www.atermaisdigital.cnptia.embrapa.br/web/saf/transicao-agroecologica)%5D. ↩︎

O poder do não-lugar: desafios e oportunidades na pesquisa inter- e transdisciplinar em Ecologia e Conservação

Construir um novo perfil profissional é criar o próprio espaço no mundo

Vincent van Gogh (1853 – 1890), Paris, Dezembro de 1887-Fevereiro de 1888. Óleo sobre tela, 65.1 cm x 50 cm. Créditos: Van Gogh Museum, Amsterdam (Vincent van Gogh Foundation).
O artista tinha o costume de pintar autorretratos, pois não tinha recursos para pagar modelos. Os autorretratos eram feitos para estudar técnicas e, por isso mesmo, ele aparece de diferentes maneiras nos quadros. A obra foi escolhida para ilustrar a ideia de que uma pintura de si mesmo é sempre uma releitura e, para esta reflexão, simboliza a criação desse novo perfil profissional. Além disso, Van Gogh foi responsável por criar um novo estilo artístico, inexistente à época, o que também associo a uma nova forma de fazer ciência.

Um dos maiores desafios na Ecologia e Conservação é a lacuna pesquisa-prática. Este desafio está relacionado à constatação de que o conhecimento produzido na Ecologia, bem como a forma de pensar e investigar questões ambientais, não estão sendo aplicadas para resolver problemas do mundo real. Adicionalmente a isso, na Biologia da Conservação cresce a ideia da importância de considerar a relação humano-natureza, em vez de ver os humanos como separados da natureza. No entanto, a superação dos problemas ambientais utilizando do conhecimento científico e a proposição de soluções criativas baseada em diversos saberes é um trabalho bastante difícil. Isso depende de tradução e fomento ao intercâmbio entre os conhecimentos, de envolver diferentes partes interessadas, de reunir e sistematizar conhecimento(s) de boa qualidade, de compreender novos desafios e manejar relações interpessoais.

A pesquisa inter- e transdisciplinar desempenha um papel importante nesse aspecto, configurando espaços onde diferentes perspectivas possam trazer suas narrativas sobre os  problemas socioambientais, ao passo que desenvolve e reproduz  práticas diferentes da ciência dominante. Criam-se, assim, soluções que potencialmente são mais benéficas para as pessoas e natureza. No entanto, quem fará todo o trabalho árduo de integrar as abordagens reunidas em iniciativas dessa natureza? Quais são as reais necessidades de quem se arrisca a iniciar uma jornada inter- e transdisciplinar? Aqui eu vou compartilhar brevemente minha própria experiência como bióloga em início de carreira que migrou de uma formação disciplinar para uma atuação inter- e transdisciplinar. Vou discutir alguns dos desafios e benefícios que encontrei e argumentar sobre porque a inter- e transdisciplinaridade são cruciais para abordar questões socioambientais.

Vamos começar do início. Durante o período de graduação, estudei Ciências Biológicas por quatro anos. Esse período foi suficiente para moldar minha forma de pensar, meu comportamento e minha visão de mundo. Eu esqueci como costumava pensar quando comecei meus estudos e achava difícil compreender porque alguém discordaria da minha perspectiva sobre a natureza – um assunto implicitamente estudado em minha área e profundamente enraizado em meu conhecimento adquirido através de incontáveis horas de estudo. Isso aconteceu, em parte, porque minha formação acadêmica tinha um foco disciplinar muito forte. Aprendi a evolução como um conceito central na Biologia e subjacente à diversidade, taxonomia, genética, zoologia, botânica e ecologia. Durante esse tempo de graduação, cada disciplina era dividida em dois ou três módulos semestrais, mais ou menos conectados entre si. Eu passei da bioquímica e biologia molecular para a genética e, paralelamente, estudei embriologia, zoologia, botânica e ecologia. Cada uma em suas caixas e com sua relevância. No final da minha graduação, eu tinha um diploma que certificava meu conhecimento em várias disciplinas dentro do campo da biologia. No entanto, embora os seres humanos fossem considerados parte da natureza, o aspecto “humano” não foi abordado de forma abrangente.

Da metade para o final da minha graduação, eu li o texto intitulado “Desafios e Oportunidades de Superar a Lacuna entre a Pesquisa e a Implementação na Ciência Ecológica e Gestão no Brasil”, escrito por pessoas que eu admiro muito por seu excelente trabalho em Ecologia e Filosofia da Ciência. Ainda nesse período, tive a sorte de fazer parte de um grande projeto de pesquisa em que a lacuna entre pesquisa e implementação era foco de discussões profundas e de vários esforços para tornar a Ecologia mais eficaz na resolução de problemas do mundo real, notadamente na agricultura, mas também com comunidades pesqueiras, manejo de áreas preservadas e políticas públicas. Este foi um momento de virada, quando percebi que as questões ambientais com as quais eu me preocupava tinham facetas que não poderiam ser adequadamente estudadas dentro da minha formação disciplinar, devido às limitações metodológicas, falta de ferramentas ou paradigmas prevalentes. De fato, as universidades são tipicamente instituições orientadas por disciplinas e apenas recentemente a área de Conservação começou a abraçar uma perspectiva de “natureza e pessoas” de forma mais ampla, o que tem implicações para a gestão, para a avaliação de currículo e impactos científicos, bem como para o desenvolvimento de teorias, métodos e ferramentas que sirvam para compreender e avaliar os sistemas socioecológicos. 

Para enfrentar esse problema, percebi que precisava entender outras abordagens fora da minha formação acadêmica e começar uma jornada inter- e transdisciplinar. Antes de aprofundar ainda mais essa discussão, é muito importante esclarecer as diferenças entre estudos disciplinares, multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. Aqui, vou adotar os conceitos apresentados no artigo de Tress, Tress e Fry disponível nesse link. Estudos disciplinares consistem em pesquisas que se concentram em um objeto específico dentro dos limites de uma única disciplina acadêmica. Estudos multidisciplinares envolvem diferentes disciplinas acadêmicas investigando um tema ou problema sob um guarda-chuva temático. O resultado do conhecimento também é disciplinar e a cooperação entre as disciplinas é limitada. Já os estudos interdisciplinares envolvem duas ou mais disciplinas não relacionadas entre si que são postas em uso para investigar um mesmo objeto, de modo que pesquisadores cruzam as fronteiras entre disciplinas a fim de criar novos conhecimentos e teorias que vão além do escopo de cada disciplina isoladamente. E, por fim, os estudos transdisciplinares reúnem não apenas disciplinas acadêmicas, mas também participantes não acadêmicos e suas visões de mundo e conhecimentos, em direção a um objetivo de pesquisa e ação comum. Acho importante mencionar que, do meu ponto de vista, não há nenhum juízo de valor sobre essas abordagens. Penso que todas são relevantes e têm seu lugar e contribuição. Há beleza tanto no estudo de caracteres específicos de uma planta e sua relação evolutiva com outras espécies, como também na colaboração entre ciência e conhecimento botânico de comunidades indígenas e locais. 

Voltando ao meu caso, trabalho com conservação de polinizadores e, mais recentemente, comecei a trabalhar com áreas urbanas. Considerando o primeiro caso, esse tema pode ser abordado de várias maneiras, por exemplo, testando como as práticas agrícolas influenciam a abundância e a diversidade de polinizadores. Temos evidências de que os polinizadores estão em declínio devido à agricultura, às mudanças climáticas, à urbanização, ao uso de pesticidas etc. Também sabemos que há uma falta significativa de dados a esse respeito em muitas partes do mundo. Parte da solução para abordar esse problema requer o envolvimento das pessoas na conservação de polinizadores, seja por meio de ações diretas de conservação seja por conscientização e elaboração de políticas públicas que melhor protejam esse serviço, por exemplo. No entanto, como podemos envolver efetivamente as pessoas na conservação de polinizadores? 

Esta é uma situação típica em que pesquisadores/as da Ecologia precisam cruzar as fronteiras de sua disciplina para encontrar outros pesquisadores em outros campos igualmente disciplinares. Em minha pesquisa de doutorado, recorri teoricamente à psicologia social e metodologicamente às ciências sociais para entender aspectos sociais relacionados à conservação de polinizadores. Vamos explorar alguns dos desafios que encontrei ao conduzir pesquisas inter- e transdisciplinares, os quais merecem grande atenção de quem busca realizar estudos dessa natureza.

Um desafio significativo para o emprego de abordagens inter- e transdisciplinares em ciências ambientais é a dependência epistêmica. Este conceito está relacionado ao fato de que, em atividades de pesquisa colaborativa – como as interdisciplinares -, os cientistas que trabalham em um campo distante de sua formação acadêmica são dependentes epistemicamente de outros cientistas vinculados a este campo para compartilhar ideias, aprender e aplicar métodos e interpretar resultados. Em segundo lugar, na pesquisa inter- e transdisciplinar, geralmente o delineamento experimental ou amostral e a coleta de dados funcionam de maneira bastante diferente, notadamente quando integramos ciências sociais e ciências ambientais. Geralmente, métodos qualitativos se encontram com métodos quantitativos para dar sentido aos resultados e o estilo de escrita e comunicação são bastante diferentes. Além disso, trabalhar com esse tipo de dados requer o desenvolvimento de novas habilidades éticas e a consideração da disponibilidade de outras pessoas para contribuir com sua pesquisa, o que pode levar muito tempo. Por último, mas não menos importante, atualmente os cientistas são avaliados principalmente por seu histórico de publicações. Os resultados de pesquisas inter- e transdisciplinares nem sempre são aceitos em revistas disciplinares, embora haja alguns exemplos de revistas de alta qualidade que se concentram nesse tipo de pesquisa. Mas o mais importante é que manter a excelência na pesquisa – propondo questões que avancem o conhecimento, executando os estudos com rigor metodológico etc. – implica uma aprendizagem profunda de um campo completamente novo, o que traz desafios epistêmicos e linguísticos

Do ponto de vista pessoal, eu adicionaria que lidar com algo desconhecido tanto para a minha formação acadêmica, quanto para a comunidade científica ao meu redor, representou um desafio ainda maior e, muitas vezes, me levou a ser questionada – principalmente por outros professores e colegas – se estava no lugar certo. Não posso deixar de mencionar que um questionamento externo só nos atravessa e nos marca quando há também um questionamento interno; afinal, nunca damos muita atenção a questões que já não existem em nós. No meu caso, como mulher negra fazendo algo diferente, essas questões também surgiram internamente, pois à época não tinha referências e experiências muito concretas que me inspirassem ou me acolhessem nesse caminho. Assim, a necessidade (e vontade) de me manter firme e inovar foram muito importantes nesse caso. Superar esse desafio requer resiliência e disposição. A criação de redes de contatos com pessoas abertas a abordagens inter- e transdisciplinares também é igualmente relevante.

A pesquisa inter- e transdisciplinar também oferece inúmeras oportunidades para ecólogos e conservacionistas. Em primeiro lugar, trabalhar em ambientes colaborativos e diversos promove o desenvolvimento de habilidades eficazes de comunicação, permitindo que os pesquisadores adaptem sua linguagem a diferentes públicos. Em segundo lugar, proporciona oportunidades para criar soluções baseadas na natureza e nas pessoas. No caso da pesquisa transdisciplinar,  diversos conhecimentos são combinados. Isso pode influenciar diretamente a tomada de decisões por meio da participação de múltiplos atores, levando em consideração também a ciência. Por fim, as abordagens inter- e transdisciplinares permitem explorar como métodos e projetos de pesquisa de diferentes disciplinas podem ser combinados para informar esforços de conservação. Apesar dos desafios, a prática contínua e o engajamento com abordagens inter- e transdisciplinares reduzem gradualmente a percepção de estar “fora do seu campo”.

Algumas discussões adicionais sobre esse tema ainda estão em aberto, principalmente se considerarmos que há esse novo perfil profissional em ascensão que ocupa um não-lugar na academia como a conhecemos hoje, mas que também transforma este não-lugar em algo inventivo. Assim, precisamos refletir sobre como os ecólogos disciplinares ensinarão a uma nova geração de pesquisadores inter- e transdisciplinares? Essa nova geração realmente pode trazer mudanças significativas? Como os ecólogos básicos e aplicados podem se engajar efetivamente nesse diálogo? Qual é o estado atual do conhecimento inter- e transdisciplinar em Ecologia e Conservação? Que habilidades outras ainda precisaremos desenvolver para atuar na pesquisa inter- e transdisciplinar? As discussões atuais também destacam a importância de considerar as relações geopolíticas, particularmente entre o Norte e o Sul Global, por meio das quais países da Europa e América do Norte têm sistematicamente oprimido e dominado países da América do Sul e África, por exemplo.  Também não podemos esquecer da necessidade de descolonizar a Ecologia e a Conservação, ou seja, de repensar a predominância do pensamento europeu nas soluções aos problemas socioambientais e abandonar práticas que reforçam injustiças ambientais. Autonomia, curiosidade e coragem são características necessárias para superar os desafios associados à formação em pesquisas inter- e transdisciplinares. Essa abordagem oferece um caminho promissor para construir um pensamento inovador e crítico sobre problemas socioambientais, além de promover a capacitação de futuros líderes e cientistas comprometidos em encontrar soluções criativas em um mundo em rápida mudança.

Caren Queiroz Souza
Pesquisadora de Pós-doutorado
Universidade Federal de São Carlos
Brasil

PARA SABER MAIS

PODCAST IN-TREE. Ep. 15 – Projetos em Siribinha e Poças. 14 jan. 2021. Disponível em:https://open.spotify.com/episode/1bpCrOwrtD2ZPt3R4SlUGG?si=ILwAg9WWR0qVdqFT_iU8NA&nd=1&dlsi=dd0c7730529145d1. Acesso em: 28 set. 2025.

RADIO USP. Transdisciplinaridade: a nova abordagem na área de pesquisas socioambientais. Jornal USP, 29 abr. 2024. Atualizado em: 19 jun. 2024. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/transdisciplinaridade-a-nova-abordagem-na-area-de-pesquisas-socioambientais/. Acesso em: 28 set. 2025.

Gorshkov, VG, Makarieva AM. Biotic Regulation: Main Page. Disponível em: <https://www.bioticregulation.ru/>. Acesso em: 21 de agosto de 2023.

Onde chove, crescem florestas e onde crescem florestas, chove

A relação entre as florestas e as chuvas é conhecida por diversas culturas. A ciência vem descrevendo essa relação cada vez com mais detalhes. Mas existem teorias que explicam essa relação?

As florestas crescem onde chove ou chove onde crescem florestas? Este foi o título dado por Antônio Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a um de seus textos sobre o papel da Floresta Amazônica na regulação do clima. Nobre costuma enfatizar, em seus textos e entrevistas, a importância da conservação da floresta e dos fenômenos controlados por ela, como a bomba biótica de umidade, a formação dos rios voadores e a emissão de aerossóis capazes de gerar núcleos de condensação de nuvens e núcleos de gelo. Tais fenômenos são imprescindíveis para a manutenção dos padrões regionais de chuva e do conforto climático que experimentamos em algumas regiões do planeta, o qual se estabeleceu nos últimos milhares de anos de história da Terra.

A teoria da bomba biótica de umidade explica que, por meio da transpiração e da condensação, as florestas criam ativamente regiões de baixa pressão, que absorvem o ar úmido dos oceanos, gerando ventos capazes de transportar umidade e sustentar a chuva nos continentes. Como as massas de terra continental estão acima do nível do mar, por efeito da gravidade toda a água líquida acumulada no solo e nos reservatórios subterrâneos flui inevitavelmente para o oceano, na direção da inclinação máxima das superfícies. Então, para acumular e manter reservas ideais de umidade na terra, seria necessário compensar o escoamento gravitacional de água para o oceano, por meio de um fluxo reverso de umidade, do oceano para a terra. Segundo essa teoria, esse fluxo reverso é impulsionado e mantido por grandes áreas contínuas de floresta. Isso quer dizer que, se a floresta for removida, o continente terá muito menos evaporação do que o oceano contíguo – com a consequente redução na condensação –, o que determinará uma reversão nos fluxos de umidade, que passarão a ir da terra para o mar, criando um deserto onde antes havia floresta. Por sua vez, ações de restauração florestal podem aumentar a precipitação local e também contribuir para o fortalecimento do transporte total de umidade do oceano para a terra continental, aumentando a magnitude e a confiabilidade da precipitação.

A Floresta Amazônica mantém o ar úmido em seu interior e exporta rios aéreos de vapor, que contribuem para formação de chuvas fartas e irrigam regiões distantes no verão do hemisfério sul. Nos últimos anos, os rios voadores, como têm sido chamados esses cursos de água atmosféricos, apareceram em matérias da mídia de grande circulação, a exemplo da BBC News Brasil e Revista Galileu. Eles foram definidos em 1992 como grandes volumes de vapor d’água que são transportados na baixa atmosfera. Um dos rios voadores de maior importância para a América do Sul é formado pela ação conjunta da forte evaporação das áreas tropicais mais quentes do Oceano Atlântico e da Floresta Amazônica. Sob ação da bomba biótica de umidade, a intensa evaporação nas áreas do oceano é sugada para dentro do continente e avança no sentido oeste, até atingir a Cordilheira dos Andes. Ao longo dessa trajetória, o vapor d’água recircula, tendo seu volume aumentado ao passar por cima da Floresta Amazônica, graças à atividade de evapotranspiração das árvores. Ele segue então seu caminho e desagua em áreas mais remotas e mais áridas nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, além de dispersar-se pelos países fronteiriços, como Paraguai e Argentina.

O processo de evapotranspiração é a perda de água pelas plantas na forma de vapor. Esse processo se inicia pela ação de diferentes fatores, em especial pela mudança de temperatura na atmosfera, que interfere no movimento da água que circula pelo corpo da planta e chega à superfície das folhas. Depois que as nuvens precipitam, grande parte da água atravessa o dossel e se infiltra pela floresta. Parte dessa água é armazenada no solo, ou mais abaixo, nos aquíferos. A água que é armazenada no solo retorna para a atmosfera quando é absorvida pelas raízes e posteriormente liberada através da evapotranspiração das árvores. Essa água absorvida pelas raízes ascende para as folhas pelo xilema, tecido condutor de água e sais minerais nas plantas vasculares.

Apesar de a transpiração ocorrer em qualquer parte do organismo vegetal acima do solo, a maior proporção ocorre nas folhas (mais de 90%), o que está associado à sua anatomia. Na superfície foliar, existe uma camada de cera interrompida por poros, denominados estômatos. No interior desses poros, há células agrupadas que emitem vapor d’água para o espaço presente entre elas, no qual há uma abertura para atmosfera, o que possibilita a perda desse vapor, fenômeno que se conhece como evapotranspiração. À medida que a água vai sendo perdida para a atmosfera, o seu movimento pelo corpo da planta continua garantindo a hidratação dos tecidos internos e a manutenção do próprio ciclo de evapotranspiração. Para que exista essa elevação da coluna d’água pelo tecido condutor, as moléculas de água precisam estar coesas e submetidas a uma força de tensão que vence a gravidade. Essa dinâmica no transporte da água do solo para as raízes e das raízes para o caule depende da pressão positiva de raiz e da capilaridade. A pressão positiva de raiz resulta da constante perda de água do interior do corpo da planta, criando uma força de arrasto da água do solo em direção às raízes, que acaba elevando a coluna d’água pela extensão do xilema, mas com um poder de ascensão limitado em função da força da gravidade, que se opõe a essa elevação. A capilaridade contribui, então, para esta ascensão da coluna d’água. Trata-se de um fenômeno físico que ocorre quando líquidos se deslocam na superfície de tubos muito finos, o que depende das propriedades de coesão e adesão.  A força de adesão depende da afinidade existente entre o líquido e a superfície sólida do tubo. Já a força de coesão depende da atração entre as moléculas do próprio líquido e atua no sentido oposto à parede do tubo. Como a água está sendo perdida pela evapotranspiração, as folhas atuam como uma bomba de sucção que mantém este processo funcionando.

No relatório O futuro climático da Amazônia, Nobre revelou que, usando dados de evaporação coletados nas torres de fluxo de um projeto de grande escala, foi possível estimar a quantidade total diária de água fluindo do solo para a atmosfera através das árvores na bacia amazônica. O valor estimado, para uma área de 5,5 milhões de km2, chegou ao total surpreendente de 20 bilhões de toneladas de água transpiradas ao dia para a atmosfera (ou 20 trilhões de litros). Se todas as florestas da porção equatorial da América do Sul fossem consideradas, esse número passaria a 22 bilhões e, se considerássemos as florestas que existiam em 1500, seriam 25 bilhões de toneladas ou mais. Para efeito comparativo, o rio Amazonas despeja no Oceano Atlântico cerca de 17 bilhões de toneladas ao dia, pelo menos 3 bilhões de toneladas a menos do que foi estimado na formação do rio aéreo.

Mais um fenômeno controlado pela floresta e capaz de atuar no clima diz respeito às emissões de aerossóis moduladas pelas árvores. Esses aerossóis são elementos-chave do sistema climático, pois são capazes de mudar os padrões de chuva na região amazônica, como consequência da redistribuição de energia e da formação de núcleos de condensação e núcleos de gelo. Os aerossóis controlam a formação de nuvens e a precipitação através de seus efeitos sobre os núcleos nos quais gotículas de água se condensam ou gelo se forma. Nuvens são agregados de gotículas em suspensão no ar. Em baixas temperaturas, estas gotículas se condensam a partir do vapor. Porém, para formar núcleos de condensação, é preciso haver uma superfície sólida ou líquida que funcione como “semente” para que se inicie a deposição e condensação das moléculas de vapor. Essas sementes são geradas pelos aerossóis encontrados na atmosfera. A depender de sua composição e abundância, eles podem espalhar ou absorver radiação, assim como aumentar ou suprimir a precipitação.

Os aerossóis são classificados em partículas primárias, produzidas deliberadamente pela flora (por exemplo, liberação de pólen e esporos de fungos) e incidentalmente (por exemplo, como restos de folhas e solo ou como microorganismos em suspensão), e partículas secundárias, produzidas na atmosfera pela oxidação de gases residuais, que resulta em compostos de baixa volatilidade. Assim como partículas de aerossóis de outras origens (por exemplo, poeira mineral, sal marinho, fumaça de biomassa – oriunda da queima de biomassa – e partículas de poluição), partículas biológicas podem influenciar a formação de nuvens e processos de precipitação através de diversos mecanismos, os quais são cruciais para a manutenção do ciclo hidrológico. A precipitação induzida por partículas primárias e secundárias, emitidas pelas florestas ou formadas na atmosfera, agindo como núcleos de condensação ou núcleos de gelo, sustenta a reprodução de plantas e microrganismos no ecossistema do qual os precursores dessas partículas são emitidos (Figura 1). Essa causalidade circular é retratada na pergunta feita por Nobre em seu texto de 2007: “As florestas crescem onde chove ou chove onde crescem florestas?” Ela pode ser entendida como um dilema do tipo ovo-ou-galinha e estimular a seguinte conclusão: “[…] onde tem mata, tem chuva” (Nobre, 2007, p. 369).

Há diferentes formas de interpretar a causalidade circular entre florestas e chuvas. Uma delas é uma proposta recente que vem sendo discutida na filosofia da biologia: a teoria organizacional das funções ecológicas. Na próxima seção, falaremos sobre ela e a abordagem que a fundamentou, a teoria da autonomia biológica.

Figura 1: Principais mecanismos associados ao controle da água pela floresta no ciclo hidrológico continental. A água presente no solo entra no corpo da planta, sendo em seguida conduzida até as folhas, onde grande parte é evapotranspirada. As árvores também contribuem com compostos orgânicos voláteis, que oxidam em contato com a atmosfera e são os maiores responsáveis pela formação de núcleos de condensação. As partículas primárias, como esporos de fungos e grãos de pólen, contribuem para a formação de núcleos de gelo, mas também podem agir como núcleos de condensação “gigantes”, gerando grandes gotas e induzindo chuva quente, sem formação de gelo.  Autor da figura: Jeferson Coutinho.

Sistemas biológicos: um tipo específico de regime causal

Uma forma de interpretar a circularidade causal entre organismos e componentes abióticos num ecossistema vem sendo explorada na construção de uma teoria organizacional das funções ecológicas. De acordo com essa teoria, assim como em outras abordagens, como a teoria da construção de nicho ou a teoria Gaia, a vida influencia as condições físico-químicas do ambiente de uma maneira que acaba por contribuir para a sua própria auto-manutenção. A teoria também compartilha com outras versões de abordagens organizacionais a ideia de fundamentar as atribuições de funções a componentes dos ecossistemas com base na proposição de que os sistemas biológicos realizam um tipo específico de regime causal, no qual as ações de um conjunto de partes são condição para a persistência de toda a organização ao longo do tempo. Essa teoria é derivada da teoria da autonomia biológica, que propõe que sistemas vivos são irredutíveis a sistemas físico-químicos, exibindo propriedades qualitativamente distintas porque apresentam uma organização específica, que pode ser descrita como um fechamento, isto é, uma circularidade causal diferente daquela encontrada em sistemas físico-químicos, como explicaremos a seguir.

A teoria da autonomia biológica considera que sistemas vivos são organizacionalmente fechados e termodinamicamente abertos. Quando dizemos que um sistema vivo é organizacionalmente fechado, estamos nos referindo ao que denominamos acima “circularidade causal”. Em termos mais precisos, isso significa que a organização biológica em questão (por exemplo, de um organismo ou ecossistema) exibe “fechamento”, isto é, seus componentes e suas operações dependem umas das outras para sua própria produção e manutenção, e determinam coletivamente as condições para que o próprio sistema exista e siga existindo. Conforme a teoria da autonomia biológica, o fechamento característico dos sistemas vivos é um “fechamento de restrições”. Isso requer, claro, que expliquemos o que são restrições.

Restrições são causas locais e contingentes, exercidas por estruturas e processos específicos, que reduzem os graus de liberdade da dinâmica ou do processo sobre o qual atuam, mas permanecem conservadas na escala de tempo relevante para descrever sua ação causal em relação àquele processo ou dinâmica. Como as restrições reduzem os graus de liberdade dos processos internos ao sistema vivo, elas contribuem para sua coordenação, a qual gera, por sua vez, novas possibilidades de comportamento e adaptação ao meio para o sistema como um todo. Uma variedade de entidades pode desempenhar o papel de restrições em um organismo, por exemplo, macromoléculas (digamos, enzimas ou ribossomos) e configurações materiais específicas (como o sistema de vasos sanguíneos ou os circuitos neurais dentro do cérebro). Reduzir graus de liberdade de um processo significa dizer que, sob a ação da restrição, o processo tem um universo menor de possíveis trajetórias, em comparação com o que teria na ausência da restrição. É essa redução de graus de liberdade que faz com que os processos sejam, sob a influência das restrições, mais coordenados, de tal maneira que a manutenção da vida seja possível. Portanto, quando nos referimos a um fechamento de restrições, estamos considerando uma rede de dependências mútuas entre partes constitutivas de um sistema que atuam como restrições, oque contribui não apenas para a manutenção e existência das outras partes do sistema, como também do próprio sistema como um todo e, consequentemente, de si mesmas.

De modo diferente dos sistemas vivos, cadeias circulares de processos também podem ocorrer sob a ação de restrições externas. Esse comportamento é tipicamente observado em sistemas físicos ou químicos e é caracterizado por sequências ordenadas de ocorrências ou estados dinâmicos que estão ligados sistematicamente uns aos outros, tipicamente de maneira causal. O fechamento de processos, como é chamado, ocorre quando esses estados ou ocorrências formam um ciclo fechado: um processo A causa um processo B, que causa um processo C, que, por sua vez, causa A. É o que ocorre, por exemplo, no fluxo circular que a água percorre sob ação da radiação solar em uma garrafa de vidro fechada e preenchida até a metade (Figura 2).

Figura 2: Fechamento de processos no fluxo circular que a água percorre sob ação da radiação solar em uma garrafa de vidro fechada e preenchida até a metade: (1) a radiação solar atravessa as paredes da garrafa e aquece a água; (2) ao atingir uma determinada temperatura, a água começa a evaporar; (3) o vapor d’água, depois de subir, condensa no topo da garrafa e cai como água líquida; (4) que fica novamente sujeita à evaporação. Autora da figura: Clarissa Leite.

A ciclagem das moléculas de água dentro da garrafa é um fluxo termodinâmico, físico-químico, circular, limitado apenas por entidades externas, a exemplo do vidro. O vidro atuam, então, como uma restrição externa, que não é regenerada pelo fluxo termodinâmico cíclico da água. No caso de um fechamento de processos, as restrições são apenas externas, não dependendo da dinâmica sobre a qual atuam, como no exemplo acima. Em vez de apenas uma cadeia circular de processos influenciada por restrições externas, sistemas biológicos produzem restrições internas, que atuam sobre seus próprios processos e, assim, exibem dois regimes causais distintos, mas interdependentes: um regime termodinâmico aberto de processos e reações e um regime fechado de dependência entre componentes que agem como restrições. Isso é o que significa dizer que esses sistemas são termodinamicamente abertos e organizacionalmente fechados.

De acordo com a teoria da autonomia biológica, funções são sempre atribuídas a componentes que atuam como restrições internas a um sistema vivo. Usando um exemplo clássico nos debates sobre funções, podemos considerar o coração para explicar o que significa atribuir função a uma restrição de acordo com essa teoria. O coração é uma parte constitutiva de muitos animais que tem a função de bombear sangue. Interpretado nos termos da teoria da autonomia biológica, pode-se afirmar que, ao bombear sangue, o coração atua como uma restrição. Primeiro, porque o bombeamento de sangue pelo coração tem o poder causal de alterar, por exemplo, a distribuição de gases e nutrientes num corpo animal, no sentido específico de que diminui os graus de liberdade desse processo de distribuição (o que ocorre, claro, com a contribuição de várias outras restrições, a exemplo de todo o conjunto de artérias, arteríolas, capilares etc.). Segundo, considerando-se que leva cerca de um minuto para o sangue circular por todo o corpo de um ser humano (a título de exemplo), podemos perceber que, na escala temporal em que o coração, ao bombear sangue, restringe a distribuição de gases e nutrientes no corpo, ele se mantém conservado (assim como as artérias, arteríolas, capilares), no preciso sentido de que ele não sofre alterações nas propriedades relevantes para sua atuação como restrição que sejam devidas ao processo de circulação do sangue, naquela escala temporal.

A atribuição de uma função a uma restrição, conforme essa teoria, se apoia exatamente no papel causal que um determinado componente de um sistema exerce, como restrição, em processos vitais de um sistema vivo, dentro do fechamento de restrições que caracteriza sua organização. Isso implica que esta parte contribui para a manutenção da organização do corpo e é, ao mesmo tempo, mantida graças ao papel de outras restrições e desta organização mesma. Apliquemos novamente isso ao caso do coração. Ao bombear sangue e, assim, atuar como uma restrição sobre a distribuição de gases e nutrientes, o coração contribui para a manutenção e existência de todas as outras partes do corpo, bem como do próprio organismo, o que, por sua vez, contribui para a manutenção e existência do próprio coração. Retomando algo que explicamos acima, o fechamento de restrições destaca exatamente essa característica dos sistemas biológicos: que seus componentes constitutivos e operações dependem uns dos outros para sua manutenção e, além disso, contribuem coletivamente para determinar as condições sob as quais o próprio sistema pode existir.   

Na teoria da autonomia biológica, as restrições que são produzidas sob influência de outras restrições são chamadas de dependentes, enquanto aquelas que participam do processo de produção de outras restrições, são chamadas de possibilitadoras. Para fazer parte do fechamento de restrições, uma restrição deve ser tanto dependente, quanto possibilitadora. Mas, e nos casos em que as restrições são apenas dependentes ou apenas possibilitadoras? As restrições que são exclusivamente possibilitadoras ou dependentes estabelecem conexões entre o sistema vivo e outros sistemas (vivos ou não), que ou constituem seu ambiente, ou se situam em níveis físico-químicos de processos internos aos seres vivos. Isso quer dizer que, para caracterizar um sistema como organizacionalmente fechado, não há a necessidade de afirmar que todas as restrições que agem na dinâmica do sistema são parte do fechamento. Mostra também que falar de fechamento organizacional não implica defender alguma independência do sistema vivo em relação ao ambiente. Um sistema que realiza fechamento organizacional de restrições é um sistema fisicamente aberto, inerentemente acoplado ao ambiente com o qual troca energia e matéria. Sem essa conexão com outros sistemas e sem troca de matéria e energia, o sistema vivo não tem como se auto-manter.

A explicação organizacional da teoria da autonomia biológica vem sendo construída desde os anos 1990, focando sobretudo sobre células e organismos. Enzimas e órgãos, como o coração, foram alguns dos exemplos usados para explicar como partes de sistemas vivos assumem funções quando atuam como restrições (p. ex., enzimas catalisando reações em células e, assim, diminuindo seus graus de liberdade; e órgãos, como o coração, diminuindo os graus de liberdade de processos como a distribuição de gases e nutrientes em determinados organismos). Em 2014, três pesquisadores aplicaram a explicação organizacional proposta por essa teoria a sistemas ecológicos, argumentando que as funções que componentes de sistemas ecológicos desempenham em processos ao nível do ecossistema como um todo podem ser entendidas como efeitos precisos (diferenciados) de componentes bióticos (vivos) ou abióticos (inanimados) que atuam como restrições sobre fluxos de matéria e energia nos ecossistemas. Isso demanda que os ecossistemas exibam uma organização que seja entendida em termos de um fechamento de restrições. Nunes-Neto, Moreno e El-Hani usaram para desenvolver a teoria o fitotelma de uma bromélia como modelo de um sistema ecológico organizacionalmente fechado, considerando as relações de predação e decomposição estabelecidas em uma teia alimentar interna a ele, envolvendo uma espécie de aranha, larvas de mosquitos e microorganismos, o que resulta numa diminuição dos graus de liberdade do fluxo de átomos como os de nitrogênio. O modelo foi representado com dois níveis hierárquicos, um relativo ao fluxo dos átomos e outro relativo aos papéis dos componentes bióticos que atuam como restrições. Essa proposta original deu os primeiros passos para a construção de uma teoria organizacional das funções ecológicas, que vem sendo aprimorada desde então.

Teoria organizacional das funções ecológicas e a formação de nuvens nos oceanos

Alguns anos depois, El-Hani e Nunes-Neto abordaram a transição de um mundo pre-biótico – composto de sistemas puramente físico-químicos – para um mundo controlado pela vida, com base na teoria organizacional. Eles descreveram como o sistema de formação de nuvens nos oceanos não resulta apenas de uma sequência de eventos físico-químicos relacionados à evaporação e precipitação da água (i.e., não resulta apenas de um fechamento de processos). Há uma participação ativa e decisiva de uma rede de interações de organismos marinhos, em especial do fitoplâncton, que levam à secreção de uma substância sulfurosa, o dimetilsulfureto (DMS), que contribui para a formação de núcleos de condensação de nuvens sobre o oceano, em um processo semelhante àquele que ocorre no continente envolvendo aerossóis liberados pelas florestas, tal como explicamos acima. Quando as nuvens precipitam, a chuva traz para o oceano precursores do dimetilsulfureto, que se tornam disponíveis para o metabolismo dos organismos marinhos, fechando, então, o ciclo estabelecido entre eles e a formação de nuvens. Como observado por estes autores, é importante notar que existe uma relação de dependência mútua entre a microbiota marinha e as nuvens, que pode ser entendida em termos de sua atuação como restrições, em escalas temporais específicas, sobre processos físico-químicos e, mais especificamente, como restrições dependentes e possibilitadoras no controle que o sistema exerce sobre o fluxo do dimetilsulfureto. A microbiota depende do enxofre depositado pela precipitação das nuvens e carreado pelos rios, assim como as nuvens dependem do enxofre derivado do dimetilsulfureto produzido pelo fitoplâncton. Assim, os autores propõem que a teoria organizacional das funções ecológicas oferece uma fundamentação consistente para explicar a transição de um fechamento de processos, no qual os ciclos do enxofre e da água correspondiam somente a uma sequência fechada de estados dinâmicos físico-químicos, para um sistema caracterizado por um fechamento de restrições, no qual a vida passa a exercer controle sobre estes dois ciclos. Se generalizarmos esse argumento, podemos chegar, então, a uma tese central da teoria Gaia, a de que, quando os seres vivos passaram a controlar parte importante dos processos físico-químicos planetários, passamos de um mundo controlado somente por processos físico-químicos a um mundo controlado pela vida.

Nesse texto sobre a relação da vida marinha com a formação de nuvens nos oceanos, El-Hani e Nunes-Neto tratam da atribuição de funções ecológicas a componentes inanimados ou abióticos. No entanto, para incluí-los como itens funcionais, eles devem, assim como os itens bióticos, atender a um critério fundamental da teoria: estar sujeitos ao fechamento, ou seja, atuar como restrições internas à organização do sistema e, portanto, sob seu controle. Como vimos anteriormente, ser uma restrição interna à organização do sistema quer dizer, segundo essa teoria, que o componente (nesse caso, abiótico) deve ser uma restrição dependente e possibilitadora. Caso não sejam restrições internas ao fechamento organizacional, não se pode atribuir funções ecológicas a esses componentes. Note-se, contudo, que eles ainda podem ser considerados relevantes na dinâmica do sistema ecológico, já que podem agir como restrições externas que afetam seus processos, mesmo não sendo parte de sua organização interna. 

Explorando um outro caso em um texto ainda não publicado, os proponentes dessa abordagem explicam que, em ecossistemas savânicos, o controle exercido por espécies de plantas adaptadas ao fogo, por meio de características relacionadas à sua inflamabilidade, i.e., à facilidade com que entram em combustão, é um exemplo de como uma restrição anteriormente externa ao sistema (o próprio fogo) pode passar a fazer parte de sua dinâmica interna, quando colocada sob controle de sua organização. Quando o fogo é integrado à dinâmica do ecossistema por meio de espécies de plantas adaptadas a ele, que exibem características de inflamabilidade e influenciam sua frequência, ele passa a ter um papel construtivo na dinâmica do ecossistema. O fogo passa a ser uma restrição possibilitadora nos ecossistemas savânicos por seu papel nos processos de rebrotamento das plantas e é, ao mesmo tempo, uma restrição dependente, na medida em que sua produção depende, em parte, das espécies de plantas adaptadas a ele. Nesses casos, pode-se até falar em coevolução do fogo e da biota. Quando o fogo não está sob controle do sistema, ele não age como uma restrição funcional interna ao mesmo, mas apenas como uma restrição externa, que age sobre componentes do ecossistema, mas sem estar sob controle de sua organização, o que pode ser uma razão para que o fogo tenha um papel destrutivo.

Mas além da relação entre os organismos marinhos, a água e o enxofre nos oceanos, bem como das plantas com o fogo em ambientes savânicos, como a teoria organizacional das funções ecológicas poderia explicar a relação entre as florestas e a chuva nos continentes?

Teoria organizacional das funções ecológicas e o ciclo hidrológico continental

A partir dos argumentos apresentados acima, podemos refletir sobre o caso do ciclo hidrológico continental, o qual abordamos no começo desse texto. Seria este também um caso de fechamento organizacional de um sistema ecológico, no qual as árvores assumem papel funcional crucial nas trocas entre o continente e a atmosfera? Assim como no exemplo do coração, tomando como base a explicação organizacional, podemos entender que as árvores são parte constitutiva do sistema hidrológico nos continentes e têm a função de controlar trocas entre o continente e a atmosfera. Mais especificamente, elas restringem o fluxo de água, energia, carbono e outros elementos entre esses dois ambientes. Ao fazerem isso, elas contribuem para a manutenção e existência de outras partes (por exemplo, as nuvens, a água) do sistema hidrológico nos continentes, bem como para a manutenção e existência do próprio sistema e de si mesmas.

Além disso, podemos dizer que a água em florestas úmidas seria inicialmente uma restrição externa, mas teria sido recrutada, como restrição possibilitadora e dependente, para compor a organização interna desses ecossistemas, assim como no caso do fogo em ecossistemas savânicos? A água é considerada um dos principais agentes modeladores em florestas úmidas, afetando a distribuição, fisionomia e diversidade de espécies características desses ecossistemas. A água pode desempenhar, então, funções relevantes nos processos ecossistêmicos de uma floresta úmida, enquanto está sob o controle de restrições internas à sua organização, como as plantas. Por exemplo, características das plantas podem determinar diferentes volumes de evapotranspiração e modular a emissão de aerossóis nucleadores de nuvens nesses ecossistemas. Esses aspectos interagem com outros fatores do clima, determinam o volume de água que circula no sistema e influenciam o regime de chuvas no continente. Uma vez que a água precipita, sua participação na germinação das sementes é de fundamental importância. E são as plantas que germinam dessas sementes que então irão evapotranspirar e emitir aerossóis para a formação de mais chuva, fechando o ciclo.

Se a Floresta Amazônica e a água são restrições no fechamento organizacional do sistema hidrológico continental, podemos interpretar que elas determinam não apenas a manutenção e existência uma da outra, como também do próprio sistema. Sendo assim, a afirmação que podemos fazer, seguindo a teoria organizacional das funções ecológicas, é que as florestas crescem onde chove e chove onde crescem florestas. Assim como nos oceanos, em algum momento da história evolutiva da Terra ocorreu, nos continentes, a transição de um fechamento de processos para um sistema caracterizado por um fechamento de restrições, ou seja, para um mundo controlado pela vida em que as plantas passaram a atuar como agentes facilitadores, mas também dependentes do sistema hidrológico continental. 

Clarissa Machado Pinto Leite (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução – INCT IN-TREE, Universidade Federal da Bahia)

Jeferson Gabriel da Encarnação Coutinho (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia/IFBA, Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução – INCT IN-TREE, Universidade Federal da Bahia)

PARA SABER MAIS

Gorshkov, VG, Makarieva AM. Biotic Regulation: Main Page. Disponível em: <https://www.bioticregulation.ru/>. Acesso em: 21 de agosto de 2023.

<Nasa Global Tour of Precipitation in Ultra HD (4K) – Youtube. 2016. Youtube NASA Goddard, 20 de maio de 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=c2-iquZziPU/>. Acesso em: 21 de agosto de 2023.

Nobre AD, 2014. O Futuro Climático da Amazônia, Relatório de Avaliação Científica. Patrocinado por ARA, CCST-INPE, e INPA. São José dos Campos, Brasil, 42p.

Pearce, F. 2020. Weather Makers. Science (American Association for the Advancement of Science) 368.6497: 1302-305. Acesso em: 21 de agosto de 2023.

Rios Voadores. 2013. Disponível em: <https://riosvoadores.com.br/> Acesso em: 21 de agosto de 2023.

Mudanças climáticas, tempestades de poeira, vacinação e outras crises modernas do coletivo

Para vencermos o desalento e a distopia temos, hoje, que compartilhar conhecimento, e Elinor Ostrom está aqui entre nós, para nos guiar do alto de sua feminina sabedoria.

Mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Talvez esta fala, que nos remete ao cerne do cristianismo, sintetize simultaneamente nossos maiores problemas sociais e alguns grandes problemas da biologia teórica. Em 1968 Garrett Hardin publicou um texto de imenso impacto (quase 50 mil citações) e ainda hoje atual (5 mil citações de 2020 para cá), no qual argumenta que os bens comuns estão fadados a serem explorados até sua exaustão. Assim, aqueles bens que não são nem propriedade privada e nem propriedade do estado, ou seja, bens que são compartilhados por muitos, como o ar que respiramos, a água dos rios, as riquezas oceânicas, a riqueza das matas intocadas, ou até mesmo bens mais prosaicos, como a conta de água do condomínio (quando não há leitura individual do gasto), ou o pó de café compartilhado por todos os membros de uma equipe de trabalho, estes bens comuns estariam permanentemente em risco de serem super-explorados pelos indivíduos que burlam as regras e tomam para si mais do que sua justa parte. Isto porque pensar no coletivo, pensar nos outros, no bem comum, seria menos natural do que pensar em seu próprio bem, seria mais difícil que cuidar apenas de sua própria vida, ou seja, de sua passagem individual (através do buraco da agulha) para o reino dos céus. Continue Lendo “Mudanças climáticas, tempestades de poeira, vacinação e outras crises modernas do coletivo”

O gigante adormecido que pode definir o futuro do planeta

Desastres naturais têm se tornado constantes nas notícias, especialmente nos últimos dois anos: queimadas das matas tropicais, incêndios de grandes proporções na América do Norte e Europa, chuvas torrenciais e inundações na Ásia e, surpreendentemente, no norte da Europa. Em agosto de 2021, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change; IPCC) foi categórico em seu sexto relatório ao atribuir a atividades humanas a intensificação do processo de mudanças climáticas. O documento conecta a emissão de gases estufa ao aumento da temperatura média global, salientando que em menos de 10 anos a mesma deve aumentar no mínimo em 1,5°C em relação ao período pré-industrial. Caso as expectativas se confirmem, esse aumento deve levar a um aceleramento no derretimento das calotas de gelo polares e a sucessivos aumentos no nível do mar, além de eventos climáticos acentuados e incomuns em diferentes regiões do planeta. Embora todas essas mudanças sejam desastrosas já a curto prazo, um processo silencioso e potencialmente mais letal está ocorrendo em um tipo de solo da região em altas latitudes que ocupa 25% das terras do hemisfério norte, o equivalente a cerca de 13 milhões de quilômetros quadrados, conhecido por permafrost. Por definição, permafrost é qualquer solo que se mantém congelado por mais de dois anos consecutivos. Esse solo se originou durante ou desde a última glaciação e é composto de rochas, sedimentos e água congelada, que atua como cimento entre os materiais. A profundidade do permafrost pode chegar a 1500 metros, sendo coberto por uma camada fina, entre 30-200 centímetros de solo ativo, que descongela nos períodos quentes do ano (figura 1). O congelamento e descongelamento dessa parte superior, o solo ativo, forma uma estrutura geométrica na superfície, indicando facilmente as regiões de permafrost (figura 2).

Figura 1. Desenho esquemático mostrando a estrutura do solo em regiões de permafrost. A camada superior, hachurada, indica a camada ativa do solo. O permafrost está representado em marrom claro. Em marrom escuro, o solo não congelado.
Figura 2. Figuras poligonais indicando a presença de permafrost no subsolo, originada pelo congelamento e descongelamento da água próxima ao solo ativo.

Com o aumento da temperatura global, há um aumento da extensão de descongelamento do solo ativo, podendo levar ao descongelamento da parte superior do permafrost. Caso essa camada não seja congelada outra vez, o solo ficará instável, pois não haverá mais o gelo como ligamento entre as rochas e os sedimentos orgânicos acumulados ao longo dos milhares de anos. Essa instabilidade pode levar ao aumento da erosão, deslizamentos de terra e avalanches. Além disso, como o permafrost é impermeável, ao ser descongelado ele passa a ser poroso, podendo levar ao desaparecimento de corpos de água por infiltração no solo ou drenagem. Assim, milhões de litros de água doce seriam perdidos. Esses fatores levariam a perda de todo um ecossistema que representa um quarto de nosso planeta. No entanto, embora sérias, essas mudanças locais não são as consequências mais graves ao nível global. Existem dois pontos importantes relacionados ao desgelo do solo que podem mudar drasticamente a vida do planeta.

O primeiro deles é a grande quantidade de matéria orgânica enterrada, congelada e preservada no permafrost. Quando o solo descongela, essa matéria orgânica fica exposta a microrganismos que quebram os compostos de carbono em metano e dióxido de carbono, os gases responsáveis pelo efeito estufa. A liberação dessa grande quantidade de gases leva a uma aceleração do aquecimento global, que por sua vez levará ao descongelamento de mais camadas de permafrost, que então levará a outra aceleração no aquecimento global, e assim sucessivamente. Esse processo é conhecido como Ciclo do Carbono do Permafrost, e é irreversível em escalas de tempo curtas (poucas centenas de anos). Embora o aquecimento leve também a um aumento da vegetação na região, essa nova vegetação só conseguiria remover uma pequena parte do carbono liberado. A quantidade de carbono presente na matéria orgânica do permafrost é de aproximadamente 1500 gigatoneladas, o que representa duas vezes a quantidade atual de carbono na atmosfera. Cientistas preveem a liberação de 10% dessa quantidade nos próximos 80 anos, caso não haja uma diminuição no ritmo do ciclo de carbono do pemafrost, o que depende de medidas globais para redução de emissão de gases poluentes.

Uma segunda consequência seria a liberação de patógenos congelados há milhares de anos no solo. A descoberta de carcaças congeladas de animais extintos (Figura 3) tem sido cada vez mais comum nas regiões de alta latitudes, em consequência do descongelamento do solo. Congeladas junto com esses animais estão diferentes vírus e bactérias que podem permanecer inativos por centenas de anos. Neste sentido, o descongelamento dessas regiões poderia potencialmente abrir uma caixa de pandora biológica. Em 2016, na Sibéria, um jovem de 12 anos faleceu após uma infecção por anthrax, que deixou dezenas de pessoas hospitalizadas. Mais tarde, foi constatado que a origem da infecção foi um cervo que havia morrido dessa mesma infecção há quase um século (durante uma pandemia que dizimou mais 1 milhão de animais), mantido congelado no permafrost, e recentemente reexposto ao ambiente após o descongelamento do solo. O caso do anthrax pode não ser um evento isolado, dado que várias bactérias, fungos e vírus, já foram descongelados em experimentos, voltando a ser plenamente ativos. Algumas dessas bactérias se mostraram resistentes a grande parte dos antibióticos conhecidos.

Figura 3. Filhote de leão de 44 mil anos recuperado no permafrost da Sibéria.

A temperatura dos permafrost tem aumentado no último meio século, em algumas regiões registrando aumento de 3°C em menos de uma década, enquanto em outras a temperatura permanece estável. O processo é rápido e irreversível devido à retroalimentação de seu ciclo de carbono, e pode ter consequências não só nos ecossistemas, mas no surgimento de novas epidemias. Em vista disso, são necessárias ações globais coordenadas, principalmente por parte das nações industriais, para diminuição da emissão de gases de efeito estufa, no intuito de evitar um colapso ambiental ainda nesse século.

 Tábita Hünemeier

IB/USP

PARA SABER MAIS:

van Huissteden, J (2020) Thawing Permafrost: Permafrost Carbon in a Warming Arctic. Springer International Publishing, 508pp.

Quanto podemos suportar perder a Amazônia?

Temos visto com frequência nos noticiários que o desmatamento da Amazônia está aumentando e que isto está diretamente relacionado com as mudanças climáticas. Mas afinal como esses temas estão relacionados? O que temos a ver com isso? Estas e outras perguntas o Dr. David Lapola responde em entrevista exclusiva ao Prof. Pedro Meirelles aqui no Darwinianas.

Nesta entrevista, o Dr. David Montenegro Lapola fala um pouco sobre sua trajetória acadêmica e como sua infância o influenciou a trilhar seus passos profissionais. Dedicado a modelar como as mudanças climáticas afetarão o futuro da Amazônia, e consequentemente milhões de vidas humanas, David fala sobre aspectos básicos para compreendermos as mudanças climática, modelagem e os principais problemas que a Amazônia vem enfrentando.

David, é Pesquisador do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura – CEPAGRI da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.

Quer saber mais sobre o que historicamente conhecemos e o que a ciência está debruçada para responder sobre esses temas? Não perca a entrevista na íntegra. Prepara um bom café, e aproveita!

Pedro Milet Meirelles

Laboratório de Bioinformática e Ecologia Microbiana

Instituto de Biologia da UFBA

meirelleslab.org

Para Saber mais:

Rammig, Anja, David M. Lapola, Patricia Pinho, Carlos NA Quesada, Irving F. Brown, Bart Kruijt, Adriano Premebida et al. “Estimating the likelihood of an Amazon forest dieback and potential socio-economic impacts.” In EGU General Assembly Conference Abstracts, p. 12619. 2018.

Fleischer, K., Rammig, A., De Kauwe, M.G., Walker, A.P., Domingues, T.F., Fuchslueger, L. and Lapola, D.M., 2019. Future CO2 fertilization of the Amazon forest hinges on plant phosphorus use and acquisition. Nature Geoscience12, pp.736-741.

Fleischer, K., Rammig, A., De Kauwe, M.G., Walker, A.P., Domingues, T.F., Fuchslueger, L., Garcia, S., Goll, D.S., Grandis, A., Jiang, M. and Haverd, V., 2019. Amazon forest response to CO2 fertilization dependent on plant phosphorus acquisition. Nature Geoscience12(9), pp.736-741.

Vai um cafezinho aí?

Quando ouvimos a palavra “café” muitas coisas vem à nossa cabeça, de modo geral coisas muito agradáveis, não é mesmo? Pode ser um ambiente acolhedor, um mimo de vó, uma conversa interessante em um ambiente agradável, o início de um dia. Aqui na Bahia, falamos com frequência: “vamos tomar um café lá em casa”, ao convidar uma amiga ou amigo para um encontro familiar. Só de pensar as vezes já podemos até sentir o aroma agradável. Pois é, o café está relacionado a rituais diários que muita gente. Esta infusão de cor escura, de aroma e sabor complexo, também está associada a produtividade e ao trabalho. Para fazê-la precisamos dos grãos torrados e moídos, mas de onde vêm esses grãos? Pois é, neste post vamos conhecer um pouco mais sobre as plantas que dão origem a esses grãos. Vamos lá?

Segundo o World Atlas, depois do petróleo o café é a segunda maior commodity a ser negociada. Esta informação é controversa, mas o fato é que mesmo não sendo a segunda, o café está entre as 5 primeiras commodities mais negociadas no mundo. Foi estimado que em 2016 aproximadamente US$ 19 bilhões foram movimentadas pelo seu comércio. O café é a terceira bebida mais consumida, água e chá são as duas primeira no ranking. Aproximadamente meio trilhão de xícaras são consumidas anualmente no mundo. O Brasil é responsável por cerca de um terço da produção de café anual (aproximadamente 2,5 milhões de toneladas métricas, sendo o maior exportador de café do planeta. Com mais de três bilhões plantas de café e com mais de cinco milhões de trabalhadores empregados nas atividades agrícolas, lideramos a produção de café há 150 anos. No Brasil mais de 1,8 milhões de hectares de terra são destinados ao cultivo do café gerando em 2019 uma receita de 19,3 bilhões de reais. Em Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo e Bahia está a maior parte da produção de café do País. A variedade arábica ocupa a maior parte da área plantada por café no Brasil, aproximadamente 1,5 milhões de hectares. É importante ressaltar que nem todo o café produzido no mundo é destinado a produção o consumo de café como bebida. Parte da produção é destinada à extração de cafeína para a produção de fármacos e estimulantes. Sem dúvidas, o café é muito importante para a economia global, para hábitos e rituais diários historicamente.  Mas… o que são essas variedades de café? Como podemos compreender melhor a sua diversidade, evolução e ecologia?

A planta do café pertence ao gênero Coffea, que tem mais de 120 espécies. A evolução deste gênero está associada à variação do tamanho do seu genoma e à pequenas alterações cromossômicas. As espécies mais conhecidas deste gênero são Coffea arabica, conhecida popularmente como “arábica” e Coffea cenephora, conhecida como “robusta”. Estas duas espécies são responsáveis por de 60 a 80% e 20 a 40% da produção mundial de café, respectivamente. Estudos apontam uma origem recente para a espécie C. arabica. Evidências moleculares relacionadas à distribuição geográfica atual indicam que esta espécie é fruto do cruzamento entre C. canephora e C. eugenioides. Hoje também utilizamos o conhecimento sobre as características das plantas para induzir o cruzamento entre plantas para melhoria da produção, dando origem ao que chamamos de variedades de café. Neste post aqui do Darwinianas, Ana Almeida explica a importância do cruzamento entre linhagens distintas para produção agrícola mundial. Para produtores e comerciantes de café essas variantes fazem toda diferença. Para muitos consumidores também, especialmente aos aficionados por cafés “especiais” (falaremos um pouco mais sobre isso ainda neste post). As variedades de café, apresentam cores, aromas e sabores muito diferentes. Algumas variedades são extremamente valorizadas, como por exemplo o café Blue Mountain, da Jamaica, por características própria das plantas, mas também por influência dos locais de plantio, que conferem características próprias aos frutos e consequentemente, aos grãos. Algumas variedades, no entanto, são mais valorizadas devido ao seu modo de produção. Um outro aspecto super importante para a biologia do café é a produção de cafeína (e seu efeito sobre a saúde humana), mas isso será assunto para um próximo post aqui no Darwinianas.

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Figura 1 – Planta de café da espécie C. arabica florida (A) e com frutos (B). Créditos: A – Marcelo Corrêa e B – Forest & Kim Starr, ambas em https://en.wikipedia.org/wiki/Coffea_arabica.

Grãos de café podem ser extremamente caros. O café mais caro do mundo é o Black Ivory (Marfim Negro, na tradução literal, Figura 2), podendo custar R$ 18.254,70 o Kilo! Isso mesmo, mais de dezoito mil reais!!! Preço em reais baseado na cotação do dólar a 5,48 reais, no dia em que escrevo este post (24 de abril de 2021). Para produzir este café, coletores do norte da Tailândia buscam grãos de café arábica em fezes de elefantes. Os frutos do café são consumidos por elefantes e parcialmente digeridos, depois disso as sementes passam por um processo de lavagem e secagem, depois a torra, como nos outros tipos de café. Além de elefantes, outros animais também são usados para produzir café. O Kopi Luwak ou café civeta, é produzidos a partir das fezes da civeta na Indonésia. O café Jacu, é produzido a partir de fezes de aves Jacu, que vivem em regiões de Mata Atlântica, esse café é majoritariamente produzido no Espírito Santo, aqui no Brasil. A produção de café a partir de fezes de animais é controversa, pois muitas vezes envolve a manutenção de animais em cativeiros, muitas vezes sob mals tratos. Os elefantes da Tailândia são exceção, pois vivem em reservas, o que dificulta muito o acesso dos coletores às fezes, encarecendo o produto. 

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Figura 2 – Frutos de café Black Ivory. Esses frutos foram coletados em fezes de elefantes no norte da Tailândia. Crédito: Blake Dinkin (https://en.wikipedia.org/wiki/Black_Ivory_Coffee)

Essa produção “peculiar” de café chama muito a nossa atenção, não é? Parece muito estranho consumir um produto que foi produzido a partir do cocô de animais. É fácil também termos um sentimento de empatia por esses animais selvagens “escravizados” em jaulas vivendo para comer e defecar, não é? Sim, mas isso também pode nos fazer pensar sobre duas coisas: 1) sobre como é o processo de produção de café e por quê fazemos questão de ter tanto trabalho para usar grãos defecados; e 2) sobre os possíveis impactos e soluções ambientais para um consumo de café mais sustentável e consciente.

Vamos começar pelas etapas de produção de café. Ao ser colhido, processo que demanda trabalho manual de milhões de trabalhadores, o café pode ser selecionado e então passa por um processo de secagem. Esse processo pode ser antecedido por um processo de remoção da polpa ou não. Os grãos secos então são armazenados, transportados e depois torrados para consumo. Aqui, não posso deixar de falar sobre o meu querido tema, a microbiota. Em diversas destas etapas sabemos que os microrganismos são fundamentais. Neste estudo, os autores abordam revisam o conhecimento atual sobre a diversidade microbiana (ou seja, microbiota ou microbioma) relacionado à produção de café. Neste post quero ressaltar que em diversas etapas da produção de café este conhecimento é muito importante. A figura 3 resume a cadeia de produção de café, da produção das sementes ao consumo. Entender como os microrganismos estão envolvidos no processo, levará ao entendimento de pontos críticos para controlar o processamento, manipulação da qualidade do café, o manejo de doenças e contaminação por fugos produtores de Ocratoxina A (ilustrado com estrelas).  Sabemos que a microbiota do trato digestivo de diversos animais é extremamente importante o processo digestivo, liberando uma série de enzimas e produzindo nutrientes. Isto não é diferente para a digestão de café produzido a partir da fermentação dentro do trato digestivo de animais, como o elefante e o jacu.

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Figura 3 – Cadeia de produção do café. As estrelas representam pontos críticos para o estudo da microbiota. Figura adaptada de Vaughan e colaboradores, 2015.

A grande maioria do café produzido e consumido no mundo vêm de sistemas de agricultura intensiva de grande porte, em monoculturas de grandes propriedades, com alto consumo de água, de fertilizantes e defensivos agrícolas (conhecidos como agrotóxicos). Apesar de ter uma grande importância econômica e cultural, sabemos que essas práticas não são amigáveis à biodiversidade. Além disso, no Brasil, o grande centro produtor de café fica no Vale do Paraíba, centenas de milhares de hectares de Mata Atlântica foram derrubados para dar espaço à produção de café na década de 1830. Para abrir espaço para as plantações, os produtores na época usavam fogo, que na maioria das vezes era descontrolado (como o que observamos recentemente no Pantanal). Como consequência, por exemplo a cidade do Rio de Janeiro chegou a enfrentar problemas de abastecimento de água, pois as nascentes que ficavam na Floresta da Tijuca secaram. Hoje a supressão de mata nativa, seja Mata Atlântica ou Cerrado, não é mais um grande problema na produção de café, como é para produção de gado ou soja. Isso quer dizer que não há solução? Que você deve se sentir culpado por consumir essa infusão tão especial? De jeito nenhum. Há uma série de alternativas. O café pode ser produzido em sistemas de agroflorestas (SAFs), junto com outras plantas. O café sombreado é bem conhecido e extremamente valorizado. Existe um investimento grande em produção de cafés orgânicos e biodinâmicos, recebendo selos de sustentabilidade ambiental e responsabilidade social. Atualmente, grande parte desses cafés mais amigáveis a biodiversidade são exportados ou são classificados como “cafés especiais”, que ainda tem um custo elevado para a maioria dos consumidores brasileiros.

Beber café é uma tradição, é um ato que envolve uma atmosfera especial. Nós, entusiastas por café, podemos ser agentes influenciadores de mudanças importantes para a biodiversidade. Por exemplo, aumentar a demanda por produtos de qualidade pode impulsionar a redução de custos desses produtos. Podemos também podemos reduzir o consumo, muitas vezes excessivo, de cafés de baixa qualidade. Será que isso possibilitaria a conversão de áreas de agricultura intensiva para sistemas mais biodiversos?

Pedro Milet Meirelles

Laboratório de Bioinformática e Ecologia Microbiana

Instituto de Biologia da UFBA

meirelleslab.org

Para Saber mais:

Martins, Ana Luiza. História do café. Editora contexto, 2012.

Dados sobre a produção de café podem ser encontrados no Observatório do Café:  http://www.consorciopesquisacafe.com.br/index.php/consorcio/separador2/observatorio-do-cafe

Você sabe o que é restauração ecológica e como ela pode nos ajudar a combater futuras pandemias?

A pandemia do novo corona vírus já infectou mais de 102 milhões de pessoas e causou mais de 2 milhões mortes. Muita informação sobre meios de evitar a contaminação e higienização vem sendo divulgadas intensamente, no entanto pouca atenção tem sido dada a causa da pandemia e meios para evitar outras novas. No post de hoje vamos falar um pouco sobre uma estratégia importante para conservação da biodiversidade que pode ser um dos meios mais eficazes para prevenir futuras pandemias como a da COVID-19, a restauração ecológica.

Com o aumento da derrubada de florestas, o crescimento populacional e a expansão do uso simplificado do solo (por exemplo, monoculturas), os riscos de novas pandemias, como a da COVID-19, aumentam (link). Em um recente estudo publicado na revista Nature, evidências coletadas de milhares de comunidades ecológicas em seis continentes mostram uma relação clara entre a intensificação do uso do solo, o desenvolvimento econômico e a perda de biodiversidade com o aumento na frequência de surtos de doenças infecciosas. Além da COVID-19, a maioria das epidemias que afetam humanos, como por exemplo Ebola, AIDS, SARS, influenza suína e aviária, vieram através do contato de humanos com animais. No atual contexto de fragilidade ambiental que vivemos no país (i.e., flexibilização de leis ambientais, enfraquecimento de instituições ambientais, expansão incontrolada da agricultura intensiva, desflorestação, aumento no tráfico ilegal de espécies silvestres), é de suma importância que encaremos o problema de frente e busquemos compreender suas causas, para que possamos evitar outros eventos trágicos como esse, ou piores. Temos a maior floresta tropical do planeta, a Amazônia, e estamos a derrubando em uma velocidade absurda. Além disso, outros biomas naturais, como o Pantanal, estão perdendo cada vez mais espaço para a pecuária e agricultura intensiva. Temos tempo de lidar a situação antes que viremos um epicentro de epidemias ou pandemias. Na literatura científica há um debate sobre o motivo que originou a pandemia do COVID-19. Uma frente defende que a contaminação e alastramento começou em resposta a destruição de habitats, uma outra defende que por causa da aproximação intensiva e desregulada entre a vida selvagem e humanos em centros urbanos.

Independentemente da causa específica da pandemia da COVID-19 ou outras epidemias, reconhecemos como sua causa geral o desequilíbrio das nossas atividades econômicas e estilo de vida com a capacidade de suporte do meio ambiente. Medidas de conservação da biodiversidade e criação de áreas protegidas são importantes medidas para a nossa própria saúde, porém a situação de degradação de áreas naturais é tão intensa que exige também restaurar áreas naturais. Esse é um enorme desafio.

Década da restauração

Agora é pra valer! Entramos na Década da Restauração de Ecossistemas. Em primeiro de março de 2019 a UNO declarou a Década da Restauração de Ecossistemas (2021-2030) (para ler a resolução publicada pela ONU, clique aqui). Esta iniciativa tem como objetivo frear a degradação de ecossistemas e restaura-los para alcançar metas globais para o desenvolvimento sustentável. O fim desta década coincide com o prazo para atingirmos também as Metas de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que é o tempo limite previsto pela comunidade científica de termos uma última chance para prevenirmos mudanças climáticas catastróficas. Setenta países de todas as localidades do globo são signatários e juntos proclamaram essa data.

A restauração ecológica não está restrita a florestas. Pântanos, pradarias, savanas (por exemplo, o cerrado brasileiro) e ambientes marinhos, como recifes de corais e manguezais (Figura 2 e 3, respectivamente) também são ameaçados e fornecem serviços ecossistêmicos extremamente importante, como proteção a linha de costa, sequestro de carbono e abrigo de biodiversidade.

Figura 2 – Restauração de recifes de corais na Índia no Golfo de Kutch (Crédito: http://www.globalcoral.org/biorock-electric-reef-restoration-projects-to-start-in-india/)
Figura 3 – Restauração de manguezais na Baía de Gazi, no Kenia (Crédito: https://www.ser-rrc.org/project/kenya-mangrove-restoration-at-gazi-bay

Áreas prioritárias para restauração

Em outro artigo recente publicado na Nature, Bernardo Strassburg (PUC-RIO) e colaboradores desenvolveram modelos para elencar áreas prioritárias para a restauração de ecossistemas no mundo. Esses modelos se basearam em múltiplos critérios de prioridade: biodiversidade, mitigação das mudanças climáticas e redução de custos relacionados (por exemplo, plantio de mudas). Nesse trabalho os autores mostraram que restaurando apenas 15% das áreas prioritárias, poderiam ser evitadas 60% da das extinções. Além disso, 299 gigatoneladas de CO2 poderiam ser sequestradas, o que corresponde a 30% do total de aumento da concentração de CO2 desde a Revolução Industrial. Os modelos de priorização de áreas para restauração propostos indicam que poderíamos reduzir os custos em 13 vezes utilizando essa abordagem.

No entanto, temos muitos desafios pela frente. Apesar da restauração de áreas degradadas  ser estimulada pela atual legislação brasileira, temos ainda desafios importantes para implementação dessas iniciativas. Por exemplo, que espécies plantar? Quantas espécies plantar? Como o número e o tipo de plantas pode beneficiar as iniciativas de reflorestamento? Além disso há uma diferença importante regional, por exemplo, espécies plantadas na Amazônia são diferentes da Mata Atlântica e Caatinga. Como as mudas devem ser plantadas também varia. Para resolver esses problemas, experimentos de larga escala são fundamentais. Um excelente exemplo é o experimento que está em fase de implementação em Juíz de Fora (MG), o BEF-Atlantic (Figura 4).


Figura 4 – O experimento BEF-Atlantic será conduzido na área de pasto abandonada na Fazenda Experimental do Núcleo de Integração Acadêmica para a Sustentabilidade Socioambiental da Universidade Federal de Juiz de Fora (NIASSA-UFJF) (Crédito: https://bef-atlantic.netlify.ap)

A pandemia da COVID-19 certamente é um grande desafio para a humanidade. Milhões de pessoas perderam a vida, famílias ficaram sem sustento e foram desestruturadas. Essa tragédia deve ser vista como um aprendizado e um alerta para todos nós, para nosso padrão de consumo e para a relação que temos com o nosso planeta. Temos que conservar o que já temos, mas não é o suficiente, precisamos restaurar o que já degradamos, ainda é tempo.

Pedro Milet Meirelles

Laboratório de Bioinformática e Ecologia Microbiana

Instituto de Biologia da UFBA

meirelleslab.org

Para Saber mais:

Zu Ermgassen, E.K.H.J., Godar, J., Lathuillière, M.J., Löfgren, P., Gardner, T., Vasconcelos, A., and Meyfroidt, P. (2020) The origin, supply chain, and deforestation risk of Brazil’s beef exports. Proc Natl Acad Sci U S A 117: 31770–31779.

Arraes, R. de A., Mariano, F.Z., and Simonassi, A.G. (2012) Causas do desmatamento no Brasil e seu ordenamento no contexto mundial. Rev Econ e Sociol Rural 50: 119–140.

Tollefson, J. (2020) Why deforestation and extinctions make pandemics more likely. Nature.

Gibb, R., Redding, D.W., Chin, K.Q., Donnelly, C.A., Blackburn, T.M., Newbold, T., and Jones, K.E. (2020) Zoonotic host diversity increases in human-dominated ecosystems. Nature.

Jones, K.E., Patel, N.G., Levy, M.A., Storeygard, A., Balk, D., Gittleman, J.L., and Daszak, P. (2008) Global trends in emerging infectious diseases. Nature.

de Andreazzi, C.S., Brandão, M.L., Bueno, M.G., Winck, G.R., Rocha, F.L., Raimundo, R.L.G., et al. (2020) Brazil’s COVID-19 response. Lancet.

Ecologia Política como práxis para entender a Crise Ambiental

Em meio ao agravamento da crise ambiental que vivemos, a Ecologia Política se apresenta como uma ferramenta para enfrentar não só os problemas ambientais, mas também a constante despolitização que é comum à pauta verde.

“Ecologia sem luta de classes é jardinagem”. A célebre frase de Chico Mendes tem sido dita em vários momentos e contextos desde recentemente, refletindo o aumento da atenção midiática à pauta ambiental, principalmente com questões como a Greve Mundial pelo Clima e as apropriações ou retrocessos das pautas socioambientais dos governos e/ou partidos de extrema direita. Entre os sentidos que podemos atribuir à afirmação de Chico Mendes, acredito ser válido dar uma maior ênfase ao sentido de que não adianta termos um avanço na atenção ambiental se esquecermos sua dimensão política, bem como ao sentido de questionarmo-nos a quem a pauta verde pode servir quando defendida acriticamente.

Mas como uma pauta que em si é crítica à degradação ambiental poderia ser defendida acriticamente? Uma das maneiras disso acontecer é justamente assumir que os problemas ambientais existiria isolado de outros, não tão claramente associados às questões ambientais. Isso ocorre, por exemplo, quando o problema ambiental é resumido á degradação ambiental, sem considerar suas relações com comunidades humanas, sua economia e autodeterminação, ou quando se considera que a causa da crise é apenas a perda da biodiversidade ou o aquecimento global, ignorando-se os interesses socioeconômicos que levam a essas questões ambientais. Uma consequência dessa visão acrítica é que as soluções propostas se tornam dependentes apenas de boa vontade política e da aplicação de técnicas ambientais corretas. “Sejamos resilientes”, “ouçamos os cientistas ambientais” e/ou “acionemos os tomadores de decisão para aplicar o conhecimento necessário” e isso seria suficiente para superaremos a crise. Porém, é justamente quando tomamos como técnica a solução para um problema complexo e de natureza fundamentalmente política que estamos lidando acriticamente com o problema, ou, pelo menos, de forma parcialmente acrítica.

Foi justamente a partir do questionamento a essa atitude acrítica que a Ecologia Política surgiu nos anos 1970-1980, apontando a necessidade de lidarmos com os problemas de cunho ambiental sem ignorarmos sua amplitude, principalmente no que tange a fatores sociais, como poder, exploração, distribuição desigual de acesso à renda e aos meios de produção e influência na economia política.

A Ecologia Política surgiu nessa época fazendo críticas relevantes a outras ciências que lidavam com a questão ambiental, assim como apontando novas tecnologias de análise para uma compreensão de maior amplitude sobre as questões e a crise socioambiental. Para entendermos mais sobre essas críticas e tecnologias, vale a pena abordamos brevemente a história desse campo.

Ecologia Política, sua crítica e compreensão socioambiental.

A Ecologia Política surgiu como campo interdisciplinar entre as décadas de 1970 e 1980. Os primeiros trabalhos nesse campo foram produzidos justamente como críticas aos limites da Ecologia e Antropologia cultural, da Geografia ambiental e dos estudos a respeito de catástrofes. Essas críticas eram focadas em como a abordagem dessas ciências não só não dava conta de entender as relações sociais de forma ampla, limitando-se a uma perspectiva empírica simplista, considerando apenas as consequências e/ou desdobramentos diretos dos fenômenos ambientais sobre a organização social estudada (e vice e versa). Também criticavam as visões neomalthusianas assumidas, ou seja, a de reduzir qualquer problema ambiental a uma questão de excedente populacional, assumindo que esse excedente era a causa da falta de recursos,  dessa forma legitimando políticas excludentes, principalmente quando se avaliavam questões envolvendo camponeses e distribuição de terra nos países de terceiro mundo. A partir disso, a Ecologia Política apontou a necessidade de que, para alcançar um entendimento dos problemas socioambientais, as análises fossem além de uma perspectiva focada apenas nos indivíduos, considerando estruturas econômicas e políticas, ou de uma visão passiva dos sujeitos e objetos de interesse, considerando seus papeis de agentes de resistência e transformação mutua. Assim, os trabalhos desse campo indicavam a necessidade de entender como as questões ambientais estavam relacionadas com questões sociopolíticas, relativas, por exemplo, à distribuição de renda, à exploração de mais valor, ou seja o trabalho socialmente necessário para a manufatura do que recebe o trabalhador, ao acesso a recursos naturais, às relações dos sujeitos com o Estado e as disputas por poder.

Dessa forma, a Ecologia Política traz uma análise do embasamento e das articulações políticas que sustentam e delimitam as questões socioambientais. Seja com foco mais voltado para questões estruturais da economia política marxiana, comum na disciplina nos anos 1970-1980, seja através de análises foucaultianas sobre as relações de poder, comuns nos anos 1990, a Ecologia Politica criou uma série de ferramentas explicativas que não se limitavam a análises empíricas simples, com foco nas respostas que os indivíduos davam, ou considerando os fenômenos de formas isoladas acerca dos objetos e sujeitos de interesse, conforme encontrados em outras disciplinas que se debruçam sobre as questões socioambientais.

Nos últimos anos, esse campo tem se direcionado a ser mais ativo, em vez de limitar-se a uma perspectiva crítica. Obras recentes têm proposto a apropriação de metodologias e intervenções comuns às ciências ambientais, como por exemplo análise de redes, uso de big data, variação de escala e seus efeitos, entre outros, para além das metodologias de diagnóstico que a Ecologia Política desenvolveu. Considero essa uma mudança muito necessária, em vista não só do agravamento das questões socioambientais, como também de sua globalização.

O Antropoceno, a Pós-Política e a Crise Ambiental

Há uma defesa nos últimos anos de que vivemos em uma nova era geológica, marcada pelo impacto que os humanos (ou talvez mais precisamente o capitalismo e a sociedade ocidental) tem aplicado sobre a terra. Comparável às forças geológicas naturais, essa nova era geológica tem sido denominada Antropoceno. Basicamente, essa era marca o desenvolvimento ocidental e o capitalismo global como uma força geológica, que mudou o equilíbrio biogeoquímico, indicando que os fenômenos naturais não podem ser mais entendidos sem levar em consideração a influência humana. Resumidamente, vivemos em uma era em que devemos considerar os fenômenos ambientais como socioambientais, e onde a estrutura socioeconômica ifluencia diretamente a existência das crises socioambientais.

Contudo, mesmo com essa concepção da intervenção humana em fenômenos não humanos, vivemos uma época de avanço constante de uma despolitização, principalmente marcada pela pós-política. Essa forma de despolitização sustenta que disputas políticas são deletérias e que as questões deveriam ser resolvidas mediante a aplicação de boas técnicas, por uma espécie de tecnocracia apta. E é interessante notar o quanto essa concepção é comum em meio a movimentos ambientalistas ou pesquisadores das ciências ambientais.

Essa concepção pós-política parte de uma postura equivocada de que boa ciência é isenta de valores, e por vezes acaba por reforçar concepções que favorecem o status quo contemporâneo, ao defender medidas focadas em concepções inerentes ao paradigma neoliberal (eficácia, adaptabilidade, austeridade etc.). Quando examinamos a gerência das crises ambientais sendo feita dessa forma, vemos um crescente uso de medidas que resultam em exclusões sociais ou dos cientistas ambientais do debate e em derrotas na aplicação das politicas publicas, resultando em agravamento das questões socioambientais nas últimas décadas, principalmente quando focamos nas políticas ambientais dos países de terceiro mundo.

Claro que não se nega a importância do bom conhecimento empírico e teórico, bem como de boas técnicas para lidar com a crise ambiental; porém, não se pode ignorar que grande parte das crises que vivemos tem origem e manutenção decorrentes de movimentos políticos voltados para a aplicação e manutenção de um sistema específico de produção e consumo. Ao se propor ir além, considerando como se dão os processos socioambientais em sua totalidade, a Ecologia Política cria um arcabouço de maior compreensão do papel dos agentes envolvidos em tais processos, de suas disputas e contradições em relação à manutenção e resolução das questões socioambientais. Esse arcabouço permite acessar com mais precisão o papel limitante das estruturas socioeconômicas das quais esses agentes fazem parte, e a partir dele podemos ter um vislumbre de como avançar nessas questões socioambientais e como resolvê-las em seus quadros cada vezes mais graves. E é justamente esse o papel que a Ecologia Política se propõe.

A Práxis Ecopolitica

A Ecologia Política é antes de tudo um campo de estudo, uma cátedra acadêmica que busca entender melhor as relações entre os muitos agentes sociais e o meio ambiente. Porém, ela se propõe a ir além, a fomentar uma práxis que vise não apenas entender essas questões, mas fazer parte da solução das mesmas.

Dessa forma, os ecólogos políticos buscam que sua compreensão seja temperada por uma prática informada e que seja capaz de informar. Pesquisa-ação, pesquisadores participantes, e intelectuais orgânicos são algumas das formas e formações a que o campo se propõe, articulando assim não só técnicas para superar as contradições e crises socioambientais, mas também se somando às ações para essa superação.

Em meio ao agravamento das crises ambientais, das previsões de pandemias cada vez mais comuns e das consequências draconianas da acumulação de renda, é mais do que necessário que não nos detenhamos apenas em entender o mundo. Nosso objetivo deve ser, mais do que nunca, mudá-lo; afinal, o nosso futuro pode depender disso. E é nessa linha que a Ecologia Política, enquanto práxis, busca se mover.        

Breno Pascal de Lacerda Brito

(Instituto de Biologia/UFBA. INCT em Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução)  

PARA SABER MAIS:

BRYANT, R.; BAILEY, S. Third World Political Ecology. e-book ed. New York: Taylor & Francis, 2005.

FERNANDES, S. Pós-Política. In: Sintomas Morbidos: A Encruzilhada da Esquerda Brasileira. São Paulo – SP: Autonomia Literaria, 2019. p. 214–254.

FORSYTH, T. Critical Political Ecology: The Politics of Environmental Science. Lodon: Routledge, 2003. PERREAULT, T.; BRIDGE, G.; MCCARTHY, J. (EDS.). The Routledge Handbook of Politcal Ecology. New York, NY: Routledge, 2015.