Para onde vão as andorinhas? Seguindo aves viajantes

Muitas aves se reproduzem em um local e, durante o outono e inverno, percorrem longas distâncias em busca de alimento em regiões onde as condições são mais favoráveis. Conheça um pouco mais sobre esse fenômeno fascinante, e como seu estudo pode conectar cientistas e cidadãos em ações de conservação e produção de conhecimento.

Migração do ganso da cara branca (Branta leucopsis) durante o outuno na Finlândia. Thermos – Own work, CC BY-SA 2.5, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1387483

A vida na Terra é regida por ciclos, dos nutrientes que circulam pelos ecossistemas, das alternâncias entre dia e noite, e das estações que se repetem anualmente. Esses ciclos funcionam como um calendário natural para diversas espécies que realizam movimentos sazonais, ou seja, deslocamentos que ocorrem em períodos específicos do ano e se repetem regularmente. Na biologia, chamamos esses movimentos de “migração”. Eles são realizados por espécies que se reproduzem em um local e, durante o outono e inverno, percorrem longas distâncias em busca de alimento em regiões onde as condições são mais favoráveis à sobrevivência.

Esses movimentos sempre fascinaram sociedades humanas, que observavam a chegada e partida das aves como sinais de mudanças no clima e, muitas vezes, como marcadores do calendário agrícola. Para os Kawaiweté, povo indígena do Xingu, a chegada das andorinhas anuncia o início da temporada de chuvas. Com o avanço do desmatamento e a consequente alteração no regime de chuvas, a presença e o número dessas aves avistadas vem mudando, revelando como mudanças ambientais afetam diretamente as migrações. Afinal, para onde as aves vão e por que partem são perguntas tão antigas quanto a própria relação humana com a natureza.

Na Grécia antiga, Aristóteles propôs uma teoria curiosa: acreditava que algumas aves desaparecidas no inverno se transformavam em outras espécies. Já durante a Idade Média, imaginava-se que andorinhas hibernavam no fundo de lagos congelados. O mistério só começou a ser desvendado séculos depois e, de certa forma, junto com outra lenda famosa: a de que cegonhas traziam bebês.

A crença estava relacionada à migração da cegonha-branca (Ciconia ciconia). Na Idade Média europeia, muitos casamentos aconteciam no início do verão. Na sequência, no início do outono, as cegonhas desapareciam e retornavam aproximadamente nove meses depois da temporada de casamentos, coincidindo com o nascimento de muitas crianças. A associação se popularizou por gerações. Até que, em 1822, algo incomum apareceu em um telhado da pequena cidade de Klütz, na Alemanha: uma cegonha com uma flecha atravessando o pescoço. Análises da origem da madeira da flecha confirmaram que ela havia viajado pelo menos 2.000 km entre a Europa e a África, e assim a compreensão moderna sobre migração ganhou um marco histórico.

A Cegonha flechada de Klütz, hoje preservada na Universidade de Rostock. A palavra em alemão Pfeilstorch (“cegonha-flecha”) foi criada para designar estes animais que chegavam à Europa atingidos por flechas ou lanças. Desde 1822, cerca de 23 desses casos foram registrados na Alemanha. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Pfeilstorch, foto do Zoologische Sammlung der Universität Rostock.

Décadas depois, em 1890, o dinamarquês Hans Mortensen inaugurou a marcação de aves com anilhas, permitindo conhecer rotas migratórias, longevidade e conectividade populacional. O método é amplamente utilizado até hoje, embora dependa de grande esforço de captura e recaptura. A partir de meados dos anos 1980, o surgimento de dispositivos que estimam posição pela luminosidade, radiotransmissores, e, posteriormente, de rastreadores GPS cada vez menores trouxe uma revolução aos estudos de migração, permitindo acompanhar trajetos completos inclusive de aves pequenas, como as andorinhas.

Existem cerca de 88 espécies de andorinhas no mundo, 18 delas no Brasil, todas apresentando algum tipo de movimento migratório. Seis espécies se reproduzem no Hemisfério Norte e chegam à América do Sul durante a nossa primavera e verão. No Brasil, andorinhas fazem parte do imaginário popular e aparecem frequentemente em praças e fiações elétricas, formando bandos expressivos e revoadas marcantes que, junto com as suas chegadas e partidas, inspiraram versos como os do Trio Parada Dura: “Nós somos andorinhas que vão e que vêm… Uma andorinha voando sozinha não faz verão”.

Bando de andorinhas-azuis (Progne subis) em Linhares, ES, Brasil. Foto: Gabriel Bonfá.

Há sete anos estudo uma dessas espécies, a andorinha-azul (Progne subis), observando os bandos que chegam ao Brasil entre setembro e abril. Conversando com moradores, percebo sempre dois pontos: encantamento com as revoadas ao amanhecer e entardecer, mas também incômodo com o barulho e o acúmulo de fezes nas áreas onde dormem; e a dúvida comum: “De onde elas vêm?”. A andorinha-azul se reproduz no sul do Canadá, nos Estados Unidos e no norte do México, mas passa a estação não reprodutiva praticamente em todo o território brasileiro. Um dos objetivos centrais da minha pesquisa é conectar cada região do Brasil às populações do Hemisfério Norte, muitas vezes separadas por dezenas de milhares de quilômetros.

Para compreender esses movimentos, é essencial conhecer a biologia da espécie. As andorinhas-azuis são divididas em três subespécies, isoladas geográfica e reprodutivamente, que diferem na distribuição, no tipo de ninho utilizado e em aspectos morfológicos sutis:

  • A subespécie do leste, a mais estudada, usa ninhos artificiais em jardins da metade leste dos EUA e Canadá. A facilidade de captura e recaptura permitiu rastrear centenas de indivíduos via GPS, revelando que passam o período não reprodutivo principalmente na Amazônia, onde formam imensos dormitórios com até 500 mil aves.
  • A subespécie do oeste nidifica em cavidades de árvores ao longo da costa oeste, do Canadá à Califórnia. Poucas populações utilizam ninhos artificiais e, por isso, poucas aves foram rastreadas, mas sabemos que aparecem durante a migração no litoral do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia.
  • A subespécie do deserto utiliza ocos de cactos no deserto de Sonora (Arizona, Califórnia e noroeste do México). É a menos conhecida: seu destino migratório permaneceu um mistério até 2023, quando um indivíduo foi rastreado até o Nordeste do Brasil.

A facilidade de recapturar os mesmos indivíduos no leste da América do Norte permitiu o uso de dispositivos de rastreamento que funcionam como discos de memória, nos quais os dados só podem ser acessados quando a ave retorna ao mesmo ninho e o dispositivo é retirado. Já nas outras subespécies, esse processo é muito mais desafiador: além de ocuparem cavidades naturais em árvores altas ou ocos de cactos no deserto, locais de difícil acesso, essas populações são menos gregárias durante a reprodução, o que reduz as chances de capturar e, principalmente, recapturar os mesmos indivíduos. No Brasil é relativamente fácil capturar andorinhas nos imensos bandos que se formam para dormir, mas é praticamente impossível reencontrar no ano seguinte o mesmo indivíduo para recuperar dispositivos. Nos últimos anos, surgiram transmissores que enviam dados em tempo real via satélite, porém, até 2021, eles ainda eram pesados demais para serem usados em aves tão pequenas.

Isso mudou quando um novo rastreador de apenas 2 g se tornou disponível e em 2025, um marco tornou essa conexão ainda mais clara: cinco andorinhas-azuis foram equipadas com transmissores via satélite em um grande dormitório de Linhares, permitindo acompanhar em tempo real suas trajetórias migratórias até o Novo México, a Califórnia e a Colúmbia Britânica. Esses avanços têm revelado rotas, gargalos ecológicos e diferenças entre subespécies, abrindo caminho para um mapa cada vez mais detalhado e preciso da presença e dos movimentos da espécie no Brasil.

Andorinha-azul (Progne subis) com rádiotransmissor no dorso. Foto: Dado Galdieri/Hilaea Media

A conservação da andorinha-azul depende diretamente da colaboração entre pesquisadores e comunidades locais. Em muitas cidades brasileiras, essas aves dormem em praças e áreas urbanas, o que gera conflitos, mas que pode levar a medidas inadequadas, como podas ou remoção de árvores usadas como dormitórios. Ao mesmo tempo, plataformas de ciência cidadã como eBird, WikiAves e observações diretas de moradores permitem localizar bandos rapidamente, registrar datas de chegada e partida e monitorar mudanças ao longo dos anos. Esses dados são fundamentais especialmente diante das mudanças climáticas, que já vêm alterando padrões de chuva e disponibilidade de insetos, afetando a sobrevivência das aves durante sua estadia no Brasil. Assim, a participação da população é essencial para transformar potenciais conflitos em oportunidades de convivência e proteção.

A migração das aves não reconhece fronteiras, e a conservação também não pode reconhecê-las. Proteger espécies que viajam milhares de quilômetros exige redes de cooperação entre pesquisadores, instituições, comunidades e governos. Projetos que conectam diferentes países e continentes são essenciais para mapear rotas completas, compartilhar dados de rastreamento, comparar ameaças regionais e alinhar ações de conservação. Cada recaptura, cada nova marcação e cada dormitório monitorado são peças de um esforço global para compreender as aves viajantes.

Clarissa Santos
Mestre em ecologia pela Universidade Federal de São Carlos, aluna de doutorado em ecologia pela Universidade de São Paulo.

PARA SABER MAIS

Projeto Andorinha-azul: iniciativas de pesquisa que estudam migração, saúde das aves, uso de habitat e conectividade entre Brasil e América do Norte. andorinhaazul.org, Instagram: @andorinhazul

Purple Martin Conservation Association: ONG norte-americana que une educação ambiental, ciência cidadã e pesquisa para a conservação da andorinha-azul.

Plataformas de ciência cidadã:

eBird – banco de dados global e colaborativo de observações de aves

WikiAves – principal repositório de registros fotográficos e sonoros da avifauna brasileira.

Por que coproduzir inovações agroecológicas com os agricultores?

Como um estudo participativo com fruticultores exportadores, pesquisadores e comerciantes do Brasil, Chile e Reino Unido desenvolveu inovações agroecológicas para aumentar a sustentabilidade e reduzir o impacto sobre a biodiversidade.

A intensificação e a expansão agrícola são os principais fatores relacionados à crescente perda global de biodiversidade observada neste século. Esse fenômeno é relevante e impacta países do sul global, incluindo os da América do Sul, que se destacam na produção agropecuária e exportação de commodities. Neste contexto, o plano Global da Biodiversidade apoia a adoção de inovações agroecológicas para reduzir os impactos da agricultura sobre a biodiversidade. As inovações agroecológicas são práticas recentemente introduzidas nos sistemas de manejo agrícola que possuem o potencial de favorecer, em paisagens agrícolas e a longo prazo, a biodiversidade e os benefícios que ela promove em áreas cultivadas.
Para que tais esforços sejam eficazes é preciso que os agricultores estejam preparados e motivados a desenvolver inovações agroecológicas que se adequem a sistemas produtivos e eficientes, que ajudem a minimizar o uso de terras para a produção de alimentos. Também é preciso que os agricultores estejam engajados e empoderados para adotar tais inovações, de modo a vislumbrar oportunidades diante do cenário político global e de alguns incentivos de mercados internacionais, a exemplo do mercado europeu. No entanto, as ações de cima para baixo que incentivam a sustentabilidade são insuficientes, ou sucumbem diante do contexto sistêmico que favorece modelos de produção intensivos.

De modo a entender como promover a participação ativa de agricultores convencionais de grande e médio porte, o projeto Manejo Sustentável de Fruteiras na Caatinga – SUFICA (www.sufica.org), utilizou a abordagem transdisciplinar e participativa descrita em estudo publicado recentemente. O nosso modelo de coprodução de conhecimento (Figura 1) ilustra como a investigação transdisciplinar pode permitir aos agricultores do Sul global envolverem-se na conservação da biodiversidade e produção sustentável em fazendas de fruticultura.

Figura 1: Modelo hierárquico em três níveis ilustrando a relação entre o mercado global de alimentos e a emergência de inovações agroecológicas. Essas inovações são testadas pelos agricultores, sob as regulamentações, restrições, oportunidades e incentivos do mercado global de alimentos (nível superior). O processo participativo, envolvendo agricultores, representantes da indústria de alimentos, e pesquisadores, exercem papel crucial na tomada de decisão sobre a adoção das práticas agroecológicas na agricultura (nível focal). Dentro do “espaço iterativo” (nível inferior) ocorre a coprodução de conhecimento pelos agricultores, representantes da industria de alimentos e pesquisadores, conduzindo ao desenvolvimento, implementação e usabilidade das inovações agroecológicas. Este processo de baixo para cima (bottom-up mechanism) promove a emergência de inovações agroecológicas com base cientifica e de fácil implementação (Adaptado de Salthe, 2010, 2012; Rocha & Rocha, 2018). Imagem desenhada por Germana Gonçalves de Araujo. Fonte: https:// doi.org/10.1002/pan3.10613

Durante o estudo, desenvolvido durante quatro anos, contamos com a participação de 14 agricultores, abrangendo uma área significativa ocupada por fruticultura intensiva (por exemplo, uva de mesa, manga e cereja) voltada, principalmente, para a exportação. Todos os agricultores estavam pressionados por compradores internacionais, especialmente da União Européia, a apresentarem ações voltadas à conservação da biodiversidade. Nosso estudo se concentrou em áreas com elevada biodiversidade, afetadas pela perda de habitat, situadas em região mediterrânea no Chile e de floresta tropical seca (Caatinga) no Brasil.

Os agricultores colaboraram ativamente com os pesquisadores e representantes da indústria, em um processo iterativo de diálogo e grupo de trabalho. Os agricultores participaram de todas as etapas do estudo, com diferentes niveis de participação, desde consultivo até a coprodução das inovações agroecológicas. Após avaliarem as evidências da Conservation Evidence (2023)1  e a experiência local, três inovações agroecológicas foram escolhidas: cultivo de cobertura, faixas com plantas nativas, e poleiros para aves. Estas inovações, priorizadas pelos produtores entre outras opções listadas (Figura 2), foram implementadas por nove produtores (apesar da Covid!).

Figura 2: Inovações agroecológicas implementadas nas fazendas. Poleiros para aves usado pela espécie alvo: (a) “gavião” (Parabuteo unicinctus) fotografado com armadilha de camera no Chile; (b) “carcará” (Caracara plancus) fotografado por um produtor no Brasil; (c) cultivo de cobertura entre as linhas do vinhedo no Brasil e (d) faixa de planta nativa no Chile. Créditos da fotos: (a,d) Nadia Rojas- Arévalo, (b) agricultor participante anônimo, (c) Patricia Oliveira-Rebouças. Fonte: https://doi.org/10.1002/pan3.10613

Nós conduzimos uma série de atividades ao longo de quatro anos, tais como oficinas participativas presenciais, em grupo e individuais, e também realizamos conversas via online, para manter a comunicação e compartilhar boas práticas, visando superar os desafios impostos pela distância geográfica e diversidade de participantes. Por meio dessas atividades conseguimos aumentar progressivamente o nível de participação, de modo que alguns agricultores engajados realizaram o monitoramento ativo da efetividade das práticas e sugeriram adaptações adequadas às suas condições particulares. As inovações agroecológicas implementadas foram mantidas após a finalização do projeto, pois ao menos uma delas foi adotada por oito dentre nove fazendas. Os agricultores relataram que a principal motivação para manter as práticas foi seu alinhamento com o sistema de manejo das fazendas e por poderem ser reconhecidas como atitude positiva à conservação da biodiversidade em sua cadeia produtiva. Além das práticas testadas neste estudo, o processo participativo disponibilizou uma lista de práticas agroecológicas, selecionada com base em evidência científica, adequação ao contexto e com boa relação custo-benefício (Conservation Evidence, 2023) que podem ser testadas em fazendas de fruticultura de regiões semiáridas de países da América do Sul, visando impulsionar a transição para um modelo de agricultura amigável à biodiversidade na região.

Ao longo da pesquisa, desenvolvemos juntos um conjunto amplo de recursos para a disseminação do conhecimento gerado a tomadores de decisão e compradores influentes localmente, os quais podem atuar como facilitadores do conhecimento e ampliar o alcance do conhecimento gerado localmente. Estes recursos incluem uma métrica de sustentabilidade online, uma série com seis cartilhas, que estão disponíveis, acessíveis e traduzidas para o idioma dos participantes, e vídeos (por exemplo, https://zenodo.org/records/10070493 ).

A nossa experiência com a realização deste projeto participativo com os agricultores evidenciou que as inovações agroecológicas têm mais chances de serem usadas quando selecionadas pelos agricultores. A partir dos resultados deste estudo, destacamos a importância de abordagens de pesquisa transdisciplinar que enfatizam a coprodução de conhecimento de base local e a colaboração entre várias partes interessadas. Sugerimos que esforços de baixo para cima para impulsionar a sustentabilidade devem ser priorizados em relação aos esforços de cima para baixo. Defendemos que as abordagens de base local podem beneficiar estratégias de cima para baixo, tais como incentivos de mercado, códigos voluntários ou regulamentações comerciais na agricultura, contribuindo para alcançar maior eficácia e promover a transição agroecológica2. Também destacamos que as partes interessadas, ligadas à produção agrícola e à indústria alimentar, podem se beneficiar de trabalhos em parceria com pesquisadores locais.

Fabiana Oliveira da Silva
Departamento de Educação em Ciências Agrárias e da Terra, Universidade Federal de Sergipe – UFS


Eduardo C. Arellano
Facultad de Agronomía y Sistemas Naturales e Instituto para el Desarrollo Sustentable, Pontificia Universidad Católica de Chile/ Center of Applied Ecology and Sustainability – CAPES


Blandina Felipe Viana
Universidade Federal da Bahia – UFBA

Vini Gbami Silva Ferreira
Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF

Patricia L. Oliveira Rebouças
Departamento de Tecnologia e Ciências Sociais, Universidade do Estado da Bahia – UNEB Campus III

Nadia Rojas-Arévalo
Department of Earth and Environmental Sciences, Faculty of Science and Engineering, University of Manchester

Andrés Muñoz- Sáez
Departamento de Producción Agrícola, Facultad de Ciencias Agronómicas, Universidad de Chile

Valentina P. Jimenez
Center of Applied Ecology and Sustainability

Natalia B. Zielonka
Durrell Institute of Conservation and Ecology, University of Kent and School of Biological Sciences, University of East Anglia

Liam P. Crowther
School of Biological Sciences, University of East Anglia)

Lynn V. Dicks
Department of Zoology, Conservation Research Institute, University of Cambridge

PARA SABER MAIS

Oliveira da Silva, F., Arellano, E. C., Felipe Viana, B., Silva-Ferreira, V., Oliveira-Rebouças, P., Rojas-Arévalo, N., Muñoz-Sáez, A., Jimenez, V. P., Zielonka, N. B., Crowther, L. P., & Dicks, L. V. (2024). Co-production of agroecological innovations to improve sustainability in South American fruit farms. People and Nature, 00, 1–16. https://doi.org/10.1002/pan3.10613

NOTAS

  1. Conservation Evidence (www.conservationevidence.com) é um recurso disponível online, gratuito e confiável, que permite o acesso fácil a ainformações mais recentes e relevantes , criado para apoiar decisões sobre como manter e restaurar a biodiversidade global. Fornece evidências e uma avaliação dessas evidências, que devem ser interpretadas por conservacionistas que compreendam seu próprio local e a situação nacional ou regional. ↩︎
  2. Processo em que sistemas produtivos convencionais da agricultura moderna, passam gradualmente a adotar princípios e tecnologias de base ecológica, tornando-se agroecossistemas mais sustentáveis. (https://www.atermaisdigital.cnptia.embrapa.br/web/saf/transicao-agroecologica)%5D. ↩︎

O poder do não-lugar: desafios e oportunidades na pesquisa inter- e transdisciplinar em Ecologia e Conservação

Construir um novo perfil profissional é criar o próprio espaço no mundo

Vincent van Gogh (1853 – 1890), Paris, Dezembro de 1887-Fevereiro de 1888. Óleo sobre tela, 65.1 cm x 50 cm. Créditos: Van Gogh Museum, Amsterdam (Vincent van Gogh Foundation).
O artista tinha o costume de pintar autorretratos, pois não tinha recursos para pagar modelos. Os autorretratos eram feitos para estudar técnicas e, por isso mesmo, ele aparece de diferentes maneiras nos quadros. A obra foi escolhida para ilustrar a ideia de que uma pintura de si mesmo é sempre uma releitura e, para esta reflexão, simboliza a criação desse novo perfil profissional. Além disso, Van Gogh foi responsável por criar um novo estilo artístico, inexistente à época, o que também associo a uma nova forma de fazer ciência.

Um dos maiores desafios na Ecologia e Conservação é a lacuna pesquisa-prática. Este desafio está relacionado à constatação de que o conhecimento produzido na Ecologia, bem como a forma de pensar e investigar questões ambientais, não estão sendo aplicadas para resolver problemas do mundo real. Adicionalmente a isso, na Biologia da Conservação cresce a ideia da importância de considerar a relação humano-natureza, em vez de ver os humanos como separados da natureza. No entanto, a superação dos problemas ambientais utilizando do conhecimento científico e a proposição de soluções criativas baseada em diversos saberes é um trabalho bastante difícil. Isso depende de tradução e fomento ao intercâmbio entre os conhecimentos, de envolver diferentes partes interessadas, de reunir e sistematizar conhecimento(s) de boa qualidade, de compreender novos desafios e manejar relações interpessoais.

A pesquisa inter- e transdisciplinar desempenha um papel importante nesse aspecto, configurando espaços onde diferentes perspectivas possam trazer suas narrativas sobre os  problemas socioambientais, ao passo que desenvolve e reproduz  práticas diferentes da ciência dominante. Criam-se, assim, soluções que potencialmente são mais benéficas para as pessoas e natureza. No entanto, quem fará todo o trabalho árduo de integrar as abordagens reunidas em iniciativas dessa natureza? Quais são as reais necessidades de quem se arrisca a iniciar uma jornada inter- e transdisciplinar? Aqui eu vou compartilhar brevemente minha própria experiência como bióloga em início de carreira que migrou de uma formação disciplinar para uma atuação inter- e transdisciplinar. Vou discutir alguns dos desafios e benefícios que encontrei e argumentar sobre porque a inter- e transdisciplinaridade são cruciais para abordar questões socioambientais.

Vamos começar do início. Durante o período de graduação, estudei Ciências Biológicas por quatro anos. Esse período foi suficiente para moldar minha forma de pensar, meu comportamento e minha visão de mundo. Eu esqueci como costumava pensar quando comecei meus estudos e achava difícil compreender porque alguém discordaria da minha perspectiva sobre a natureza – um assunto implicitamente estudado em minha área e profundamente enraizado em meu conhecimento adquirido através de incontáveis horas de estudo. Isso aconteceu, em parte, porque minha formação acadêmica tinha um foco disciplinar muito forte. Aprendi a evolução como um conceito central na Biologia e subjacente à diversidade, taxonomia, genética, zoologia, botânica e ecologia. Durante esse tempo de graduação, cada disciplina era dividida em dois ou três módulos semestrais, mais ou menos conectados entre si. Eu passei da bioquímica e biologia molecular para a genética e, paralelamente, estudei embriologia, zoologia, botânica e ecologia. Cada uma em suas caixas e com sua relevância. No final da minha graduação, eu tinha um diploma que certificava meu conhecimento em várias disciplinas dentro do campo da biologia. No entanto, embora os seres humanos fossem considerados parte da natureza, o aspecto “humano” não foi abordado de forma abrangente.

Da metade para o final da minha graduação, eu li o texto intitulado “Desafios e Oportunidades de Superar a Lacuna entre a Pesquisa e a Implementação na Ciência Ecológica e Gestão no Brasil”, escrito por pessoas que eu admiro muito por seu excelente trabalho em Ecologia e Filosofia da Ciência. Ainda nesse período, tive a sorte de fazer parte de um grande projeto de pesquisa em que a lacuna entre pesquisa e implementação era foco de discussões profundas e de vários esforços para tornar a Ecologia mais eficaz na resolução de problemas do mundo real, notadamente na agricultura, mas também com comunidades pesqueiras, manejo de áreas preservadas e políticas públicas. Este foi um momento de virada, quando percebi que as questões ambientais com as quais eu me preocupava tinham facetas que não poderiam ser adequadamente estudadas dentro da minha formação disciplinar, devido às limitações metodológicas, falta de ferramentas ou paradigmas prevalentes. De fato, as universidades são tipicamente instituições orientadas por disciplinas e apenas recentemente a área de Conservação começou a abraçar uma perspectiva de “natureza e pessoas” de forma mais ampla, o que tem implicações para a gestão, para a avaliação de currículo e impactos científicos, bem como para o desenvolvimento de teorias, métodos e ferramentas que sirvam para compreender e avaliar os sistemas socioecológicos. 

Para enfrentar esse problema, percebi que precisava entender outras abordagens fora da minha formação acadêmica e começar uma jornada inter- e transdisciplinar. Antes de aprofundar ainda mais essa discussão, é muito importante esclarecer as diferenças entre estudos disciplinares, multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. Aqui, vou adotar os conceitos apresentados no artigo de Tress, Tress e Fry disponível nesse link. Estudos disciplinares consistem em pesquisas que se concentram em um objeto específico dentro dos limites de uma única disciplina acadêmica. Estudos multidisciplinares envolvem diferentes disciplinas acadêmicas investigando um tema ou problema sob um guarda-chuva temático. O resultado do conhecimento também é disciplinar e a cooperação entre as disciplinas é limitada. Já os estudos interdisciplinares envolvem duas ou mais disciplinas não relacionadas entre si que são postas em uso para investigar um mesmo objeto, de modo que pesquisadores cruzam as fronteiras entre disciplinas a fim de criar novos conhecimentos e teorias que vão além do escopo de cada disciplina isoladamente. E, por fim, os estudos transdisciplinares reúnem não apenas disciplinas acadêmicas, mas também participantes não acadêmicos e suas visões de mundo e conhecimentos, em direção a um objetivo de pesquisa e ação comum. Acho importante mencionar que, do meu ponto de vista, não há nenhum juízo de valor sobre essas abordagens. Penso que todas são relevantes e têm seu lugar e contribuição. Há beleza tanto no estudo de caracteres específicos de uma planta e sua relação evolutiva com outras espécies, como também na colaboração entre ciência e conhecimento botânico de comunidades indígenas e locais. 

Voltando ao meu caso, trabalho com conservação de polinizadores e, mais recentemente, comecei a trabalhar com áreas urbanas. Considerando o primeiro caso, esse tema pode ser abordado de várias maneiras, por exemplo, testando como as práticas agrícolas influenciam a abundância e a diversidade de polinizadores. Temos evidências de que os polinizadores estão em declínio devido à agricultura, às mudanças climáticas, à urbanização, ao uso de pesticidas etc. Também sabemos que há uma falta significativa de dados a esse respeito em muitas partes do mundo. Parte da solução para abordar esse problema requer o envolvimento das pessoas na conservação de polinizadores, seja por meio de ações diretas de conservação seja por conscientização e elaboração de políticas públicas que melhor protejam esse serviço, por exemplo. No entanto, como podemos envolver efetivamente as pessoas na conservação de polinizadores? 

Esta é uma situação típica em que pesquisadores/as da Ecologia precisam cruzar as fronteiras de sua disciplina para encontrar outros pesquisadores em outros campos igualmente disciplinares. Em minha pesquisa de doutorado, recorri teoricamente à psicologia social e metodologicamente às ciências sociais para entender aspectos sociais relacionados à conservação de polinizadores. Vamos explorar alguns dos desafios que encontrei ao conduzir pesquisas inter- e transdisciplinares, os quais merecem grande atenção de quem busca realizar estudos dessa natureza.

Um desafio significativo para o emprego de abordagens inter- e transdisciplinares em ciências ambientais é a dependência epistêmica. Este conceito está relacionado ao fato de que, em atividades de pesquisa colaborativa – como as interdisciplinares -, os cientistas que trabalham em um campo distante de sua formação acadêmica são dependentes epistemicamente de outros cientistas vinculados a este campo para compartilhar ideias, aprender e aplicar métodos e interpretar resultados. Em segundo lugar, na pesquisa inter- e transdisciplinar, geralmente o delineamento experimental ou amostral e a coleta de dados funcionam de maneira bastante diferente, notadamente quando integramos ciências sociais e ciências ambientais. Geralmente, métodos qualitativos se encontram com métodos quantitativos para dar sentido aos resultados e o estilo de escrita e comunicação são bastante diferentes. Além disso, trabalhar com esse tipo de dados requer o desenvolvimento de novas habilidades éticas e a consideração da disponibilidade de outras pessoas para contribuir com sua pesquisa, o que pode levar muito tempo. Por último, mas não menos importante, atualmente os cientistas são avaliados principalmente por seu histórico de publicações. Os resultados de pesquisas inter- e transdisciplinares nem sempre são aceitos em revistas disciplinares, embora haja alguns exemplos de revistas de alta qualidade que se concentram nesse tipo de pesquisa. Mas o mais importante é que manter a excelência na pesquisa – propondo questões que avancem o conhecimento, executando os estudos com rigor metodológico etc. – implica uma aprendizagem profunda de um campo completamente novo, o que traz desafios epistêmicos e linguísticos

Do ponto de vista pessoal, eu adicionaria que lidar com algo desconhecido tanto para a minha formação acadêmica, quanto para a comunidade científica ao meu redor, representou um desafio ainda maior e, muitas vezes, me levou a ser questionada – principalmente por outros professores e colegas – se estava no lugar certo. Não posso deixar de mencionar que um questionamento externo só nos atravessa e nos marca quando há também um questionamento interno; afinal, nunca damos muita atenção a questões que já não existem em nós. No meu caso, como mulher negra fazendo algo diferente, essas questões também surgiram internamente, pois à época não tinha referências e experiências muito concretas que me inspirassem ou me acolhessem nesse caminho. Assim, a necessidade (e vontade) de me manter firme e inovar foram muito importantes nesse caso. Superar esse desafio requer resiliência e disposição. A criação de redes de contatos com pessoas abertas a abordagens inter- e transdisciplinares também é igualmente relevante.

A pesquisa inter- e transdisciplinar também oferece inúmeras oportunidades para ecólogos e conservacionistas. Em primeiro lugar, trabalhar em ambientes colaborativos e diversos promove o desenvolvimento de habilidades eficazes de comunicação, permitindo que os pesquisadores adaptem sua linguagem a diferentes públicos. Em segundo lugar, proporciona oportunidades para criar soluções baseadas na natureza e nas pessoas. No caso da pesquisa transdisciplinar,  diversos conhecimentos são combinados. Isso pode influenciar diretamente a tomada de decisões por meio da participação de múltiplos atores, levando em consideração também a ciência. Por fim, as abordagens inter- e transdisciplinares permitem explorar como métodos e projetos de pesquisa de diferentes disciplinas podem ser combinados para informar esforços de conservação. Apesar dos desafios, a prática contínua e o engajamento com abordagens inter- e transdisciplinares reduzem gradualmente a percepção de estar “fora do seu campo”.

Algumas discussões adicionais sobre esse tema ainda estão em aberto, principalmente se considerarmos que há esse novo perfil profissional em ascensão que ocupa um não-lugar na academia como a conhecemos hoje, mas que também transforma este não-lugar em algo inventivo. Assim, precisamos refletir sobre como os ecólogos disciplinares ensinarão a uma nova geração de pesquisadores inter- e transdisciplinares? Essa nova geração realmente pode trazer mudanças significativas? Como os ecólogos básicos e aplicados podem se engajar efetivamente nesse diálogo? Qual é o estado atual do conhecimento inter- e transdisciplinar em Ecologia e Conservação? Que habilidades outras ainda precisaremos desenvolver para atuar na pesquisa inter- e transdisciplinar? As discussões atuais também destacam a importância de considerar as relações geopolíticas, particularmente entre o Norte e o Sul Global, por meio das quais países da Europa e América do Norte têm sistematicamente oprimido e dominado países da América do Sul e África, por exemplo.  Também não podemos esquecer da necessidade de descolonizar a Ecologia e a Conservação, ou seja, de repensar a predominância do pensamento europeu nas soluções aos problemas socioambientais e abandonar práticas que reforçam injustiças ambientais. Autonomia, curiosidade e coragem são características necessárias para superar os desafios associados à formação em pesquisas inter- e transdisciplinares. Essa abordagem oferece um caminho promissor para construir um pensamento inovador e crítico sobre problemas socioambientais, além de promover a capacitação de futuros líderes e cientistas comprometidos em encontrar soluções criativas em um mundo em rápida mudança.

Caren Queiroz Souza
Pesquisadora de Pós-doutorado
Universidade Federal de São Carlos
Brasil

PARA SABER MAIS

PODCAST IN-TREE. Ep. 15 – Projetos em Siribinha e Poças. 14 jan. 2021. Disponível em:https://open.spotify.com/episode/1bpCrOwrtD2ZPt3R4SlUGG?si=ILwAg9WWR0qVdqFT_iU8NA&nd=1&dlsi=dd0c7730529145d1. Acesso em: 28 set. 2025.

RADIO USP. Transdisciplinaridade: a nova abordagem na área de pesquisas socioambientais. Jornal USP, 29 abr. 2024. Atualizado em: 19 jun. 2024. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/transdisciplinaridade-a-nova-abordagem-na-area-de-pesquisas-socioambientais/. Acesso em: 28 set. 2025.

Gorshkov, VG, Makarieva AM. Biotic Regulation: Main Page. Disponível em: <https://www.bioticregulation.ru/>. Acesso em: 21 de agosto de 2023.

Mudanças climáticas, tempestades de poeira, vacinação e outras crises modernas do coletivo

Para vencermos o desalento e a distopia temos, hoje, que compartilhar conhecimento, e Elinor Ostrom está aqui entre nós, para nos guiar do alto de sua feminina sabedoria.

Mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Talvez esta fala, que nos remete ao cerne do cristianismo, sintetize simultaneamente nossos maiores problemas sociais e alguns grandes problemas da biologia teórica. Em 1968 Garrett Hardin publicou um texto de imenso impacto (quase 50 mil citações) e ainda hoje atual (5 mil citações de 2020 para cá), no qual argumenta que os bens comuns estão fadados a serem explorados até sua exaustão. Assim, aqueles bens que não são nem propriedade privada e nem propriedade do estado, ou seja, bens que são compartilhados por muitos, como o ar que respiramos, a água dos rios, as riquezas oceânicas, a riqueza das matas intocadas, ou até mesmo bens mais prosaicos, como a conta de água do condomínio (quando não há leitura individual do gasto), ou o pó de café compartilhado por todos os membros de uma equipe de trabalho, estes bens comuns estariam permanentemente em risco de serem super-explorados pelos indivíduos que burlam as regras e tomam para si mais do que sua justa parte. Isto porque pensar no coletivo, pensar nos outros, no bem comum, seria menos natural do que pensar em seu próprio bem, seria mais difícil que cuidar apenas de sua própria vida, ou seja, de sua passagem individual (através do buraco da agulha) para o reino dos céus. Continue Lendo “Mudanças climáticas, tempestades de poeira, vacinação e outras crises modernas do coletivo”

O gigante adormecido que pode definir o futuro do planeta

Desastres naturais têm se tornado constantes nas notícias, especialmente nos últimos dois anos: queimadas das matas tropicais, incêndios de grandes proporções na América do Norte e Europa, chuvas torrenciais e inundações na Ásia e, surpreendentemente, no norte da Europa. Em agosto de 2021, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change; IPCC) foi categórico em seu sexto relatório ao atribuir a atividades humanas a intensificação do processo de mudanças climáticas. O documento conecta a emissão de gases estufa ao aumento da temperatura média global, salientando que em menos de 10 anos a mesma deve aumentar no mínimo em 1,5°C em relação ao período pré-industrial. Caso as expectativas se confirmem, esse aumento deve levar a um aceleramento no derretimento das calotas de gelo polares e a sucessivos aumentos no nível do mar, além de eventos climáticos acentuados e incomuns em diferentes regiões do planeta. Embora todas essas mudanças sejam desastrosas já a curto prazo, um processo silencioso e potencialmente mais letal está ocorrendo em um tipo de solo da região em altas latitudes que ocupa 25% das terras do hemisfério norte, o equivalente a cerca de 13 milhões de quilômetros quadrados, conhecido por permafrost. Por definição, permafrost é qualquer solo que se mantém congelado por mais de dois anos consecutivos. Esse solo se originou durante ou desde a última glaciação e é composto de rochas, sedimentos e água congelada, que atua como cimento entre os materiais. A profundidade do permafrost pode chegar a 1500 metros, sendo coberto por uma camada fina, entre 30-200 centímetros de solo ativo, que descongela nos períodos quentes do ano (figura 1). O congelamento e descongelamento dessa parte superior, o solo ativo, forma uma estrutura geométrica na superfície, indicando facilmente as regiões de permafrost (figura 2).

Figura 1. Desenho esquemático mostrando a estrutura do solo em regiões de permafrost. A camada superior, hachurada, indica a camada ativa do solo. O permafrost está representado em marrom claro. Em marrom escuro, o solo não congelado.
Figura 2. Figuras poligonais indicando a presença de permafrost no subsolo, originada pelo congelamento e descongelamento da água próxima ao solo ativo.

Com o aumento da temperatura global, há um aumento da extensão de descongelamento do solo ativo, podendo levar ao descongelamento da parte superior do permafrost. Caso essa camada não seja congelada outra vez, o solo ficará instável, pois não haverá mais o gelo como ligamento entre as rochas e os sedimentos orgânicos acumulados ao longo dos milhares de anos. Essa instabilidade pode levar ao aumento da erosão, deslizamentos de terra e avalanches. Além disso, como o permafrost é impermeável, ao ser descongelado ele passa a ser poroso, podendo levar ao desaparecimento de corpos de água por infiltração no solo ou drenagem. Assim, milhões de litros de água doce seriam perdidos. Esses fatores levariam a perda de todo um ecossistema que representa um quarto de nosso planeta. No entanto, embora sérias, essas mudanças locais não são as consequências mais graves ao nível global. Existem dois pontos importantes relacionados ao desgelo do solo que podem mudar drasticamente a vida do planeta.

O primeiro deles é a grande quantidade de matéria orgânica enterrada, congelada e preservada no permafrost. Quando o solo descongela, essa matéria orgânica fica exposta a microrganismos que quebram os compostos de carbono em metano e dióxido de carbono, os gases responsáveis pelo efeito estufa. A liberação dessa grande quantidade de gases leva a uma aceleração do aquecimento global, que por sua vez levará ao descongelamento de mais camadas de permafrost, que então levará a outra aceleração no aquecimento global, e assim sucessivamente. Esse processo é conhecido como Ciclo do Carbono do Permafrost, e é irreversível em escalas de tempo curtas (poucas centenas de anos). Embora o aquecimento leve também a um aumento da vegetação na região, essa nova vegetação só conseguiria remover uma pequena parte do carbono liberado. A quantidade de carbono presente na matéria orgânica do permafrost é de aproximadamente 1500 gigatoneladas, o que representa duas vezes a quantidade atual de carbono na atmosfera. Cientistas preveem a liberação de 10% dessa quantidade nos próximos 80 anos, caso não haja uma diminuição no ritmo do ciclo de carbono do pemafrost, o que depende de medidas globais para redução de emissão de gases poluentes.

Uma segunda consequência seria a liberação de patógenos congelados há milhares de anos no solo. A descoberta de carcaças congeladas de animais extintos (Figura 3) tem sido cada vez mais comum nas regiões de alta latitudes, em consequência do descongelamento do solo. Congeladas junto com esses animais estão diferentes vírus e bactérias que podem permanecer inativos por centenas de anos. Neste sentido, o descongelamento dessas regiões poderia potencialmente abrir uma caixa de pandora biológica. Em 2016, na Sibéria, um jovem de 12 anos faleceu após uma infecção por anthrax, que deixou dezenas de pessoas hospitalizadas. Mais tarde, foi constatado que a origem da infecção foi um cervo que havia morrido dessa mesma infecção há quase um século (durante uma pandemia que dizimou mais 1 milhão de animais), mantido congelado no permafrost, e recentemente reexposto ao ambiente após o descongelamento do solo. O caso do anthrax pode não ser um evento isolado, dado que várias bactérias, fungos e vírus, já foram descongelados em experimentos, voltando a ser plenamente ativos. Algumas dessas bactérias se mostraram resistentes a grande parte dos antibióticos conhecidos.

Figura 3. Filhote de leão de 44 mil anos recuperado no permafrost da Sibéria.

A temperatura dos permafrost tem aumentado no último meio século, em algumas regiões registrando aumento de 3°C em menos de uma década, enquanto em outras a temperatura permanece estável. O processo é rápido e irreversível devido à retroalimentação de seu ciclo de carbono, e pode ter consequências não só nos ecossistemas, mas no surgimento de novas epidemias. Em vista disso, são necessárias ações globais coordenadas, principalmente por parte das nações industriais, para diminuição da emissão de gases de efeito estufa, no intuito de evitar um colapso ambiental ainda nesse século.

 Tábita Hünemeier

IB/USP

PARA SABER MAIS:

van Huissteden, J (2020) Thawing Permafrost: Permafrost Carbon in a Warming Arctic. Springer International Publishing, 508pp.

Quanto podemos suportar perder a Amazônia?

Temos visto com frequência nos noticiários que o desmatamento da Amazônia está aumentando e que isto está diretamente relacionado com as mudanças climáticas. Mas afinal como esses temas estão relacionados? O que temos a ver com isso? Estas e outras perguntas o Dr. David Lapola responde em entrevista exclusiva ao Prof. Pedro Meirelles aqui no Darwinianas.

Nesta entrevista, o Dr. David Montenegro Lapola fala um pouco sobre sua trajetória acadêmica e como sua infância o influenciou a trilhar seus passos profissionais. Dedicado a modelar como as mudanças climáticas afetarão o futuro da Amazônia, e consequentemente milhões de vidas humanas, David fala sobre aspectos básicos para compreendermos as mudanças climática, modelagem e os principais problemas que a Amazônia vem enfrentando.

David, é Pesquisador do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura – CEPAGRI da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.

Quer saber mais sobre o que historicamente conhecemos e o que a ciência está debruçada para responder sobre esses temas? Não perca a entrevista na íntegra. Prepara um bom café, e aproveita!

Pedro Milet Meirelles

Laboratório de Bioinformática e Ecologia Microbiana

Instituto de Biologia da UFBA

meirelleslab.org

Para Saber mais:

Rammig, Anja, David M. Lapola, Patricia Pinho, Carlos NA Quesada, Irving F. Brown, Bart Kruijt, Adriano Premebida et al. “Estimating the likelihood of an Amazon forest dieback and potential socio-economic impacts.” In EGU General Assembly Conference Abstracts, p. 12619. 2018.

Fleischer, K., Rammig, A., De Kauwe, M.G., Walker, A.P., Domingues, T.F., Fuchslueger, L. and Lapola, D.M., 2019. Future CO2 fertilization of the Amazon forest hinges on plant phosphorus use and acquisition. Nature Geoscience12, pp.736-741.

Fleischer, K., Rammig, A., De Kauwe, M.G., Walker, A.P., Domingues, T.F., Fuchslueger, L., Garcia, S., Goll, D.S., Grandis, A., Jiang, M. and Haverd, V., 2019. Amazon forest response to CO2 fertilization dependent on plant phosphorus acquisition. Nature Geoscience12(9), pp.736-741.