Nas teias do social

O que falta para sermos mais que a soma da inteligência das partes?

É comum dizermos que agimos de tal ou qual forma por nossa personalidade impulsiva, ou extrovertida, ou controladora, aparentando assim justificar nossas ações. Podemos até avaliar de forma relativamente precisa aspectos de nossa personalidade. Certos indivíduos são sistematicamente mais extrovertidos que outros, e independentemente do tipo de avaliação que utilizemos, vamos sempre encontrar um ranqueamento estável entre indivíduos: um deles sempre em primeiro, outro sempre em segundo, terceiro, e assim sucessivamente, por exemplo, no quesito extroversão. A existência deste ranque estável indica estabilidade no comportamento, indica a personalidade. A personalidade é parte da explicação de nosso comportamento em geral, inclusive, por exemplo, com relação à pandemia: há indivíduos que sistematicamente se isolam em casa, enquanto outros, muitas vezes, escolhem não se isolar. Claro, muitos fatores contribuem para estas decisões, incluindo impulsionamentos em massa em redes sociais patrocinadas e com perfis falsos, mas o ponto aqui é apenas que a personalidade é um desses fatores. De qualquer modo, em um tema assim delicado, é preciso muito cuidado e atenção: o fato de conseguirmos explicar algo não significa que conseguimos justificar esse algo. Aglomerações e festas no meio de uma das maiores pandemias que o mundo já enfrentou são decididamente atitudes irracionais, e injustificáveis.

Será que a personalidade seria também uma explicação para a diferença entre culturas ou países? Digo, será que a taxa de mortalidade nesta pandemia estaria associada à personalidade do grupo como um todo? Será que faria sentido ranquear os países no quesito ousadia, sendo o Japão sistematicamente menos extrovertido que, por exemplo, o Brasil? Para avaliar esta possibilidade, precisamos primeiro separar a ideia da existência de personalidade em grupo da ideia, um tanto distinta, da existência de personalidade de grupo. A personalidade humana e animal é sempre fruto do ambiente social do indivíduo, e desta forma a minha personalidade certamente varia em função do meu grupo de amigos. De certa forma, minha personalidade é sempre ligada ao meu entorno, pois ela existe só neste grupo específico, ela se funda em interações sociais estáveis e estabelecidas. Minha personalidade não se dá jamais no vácuo, mas sempre em um contexto social que a influencia. Indivíduo e grupo estão entrelaçados, e a esta personalidade individual fundada no social podemos chamar personalidade em grupo. Agora, da existência de personalidade em grupo não decorre que o grupo em si tenha uma personalidade, digamos, autônoma em relação à personalidade dos indivíduos que compõem o próprio grupo: personalidade em grupo não resulta necessariamente em personalidade de grupo. Enquanto a personalidade do indivíduo (que vive em grupo) é medida apenas no indivíduo, a personalidade do grupo é medida apenas no grupo. Isso significa que seria possível existir, por exemplo, um grupo tímido (personalidade do grupo) formado por indivíduos relativamente ousados (personalidade dos indivíduos). Como isso seria possível? E como estudar estes distintos níveis de personalidade?

Como ser humano é sempre muito complicado, cientistas passaram a estudar esta questão em animais sociais mais simples, como abelhas, formigas, aranhas. E como eles fazem isso, como estudam personalidade em animais tão distintos de nós? Muito simples (aliás, simples demais). Separa-se a aranha de seu grupo social, espera-se que ela se habitue ao trauma desta manipulação (volte a andar e explorar seu novo ambiente), para então simular em laboratório um evento em que ela estivesse sendo caçada (simula-se o bater de asas de uma ave predadora). A aranha imediatamente se recolhe, formando uma bolinha de pernas coladas ao corpo, camuflada em um canto qualquer. Alguns indivíduos se recuperam rapidamente do “ataque da ave”, e passam a explorar novamente o ambiente, enquanto outros, sistematicamente, são menos ousados, demoram mais para retomar o normal da vida. Assim, medimos a ousadia de cada indivíduo medindo o tempo para se recuperar do ataque, e mostramos que, sim, aranhas, abelhas, formigas, cupins, e qualquer outra espécie que já tenha sido medida, apresentam personalidade.

Mas falávamos de personalidade de grupo … então, como medir a personalidade de uma colmeia? Para isso, precisamos de uma tarefa que seja coletiva, como, por exemplo, a decisão de um formigueiro entre duas fontes alternativas de alimento, uma mais próxima, outra mais distante. Esta decisão não é nunca tomada por um indivíduo: formam-se trilhas simultâneas para as duas fontes de alimento, e a trilha que recrutar mais formigas vence, o que de certa forma reflete uma democracia curiosa, na qual cada indivíduo vota em uma das opções (segue uma das duas trilhas) sem nunca conhecer simultaneamente as duas. Esta democracia às escuras sintetiza o processo decisório social em muitas das escolhas dos insetos sociais. Sabendo disso, os pesquisadores oferecem um problema para um formigueiro (esta escolha entre duas fontes de alimento) e medem quanto tempo demora para a decisão social. Fazem o mesmo para um segundo formigueiro, e um terceiro, e percebem, repetindo muitas vezes o experimento, que um dos formigueiros sempre é o primeiro a decidir, outro é sempre o segundo, e assim por diante: há um ranque estável entre os formigueiros. A partir de experimentos deste tipo, os pesquisadores concluem que há diferenças estáveis entre os formigueiros, no que se refere ao comportamento social. A estas diferenças, eles denominam personalidade social, que foi evidenciada em inúmeras espécies de insetos e aranhas sociais.

Agora vem nossa pergunta: esta personalidade social reflete a personalidade de grupo, a existência de um novo nível de organização acima do indivíduo, ou reflete simplesmente a personalidade dos indivíduos? No primeiro caso, teríamos de fato uma organização social tal que seria a sociedade que controlaria as interações entre os indivíduos, de modo que os indivíduos seriam apenas peões agindo cegamente em um jogo no qual a estratégia global vencedora não estaria no cérebro dos indivíduos, mas sim na organização de suas interações. No segundo caso, a organização das interações seria apenas um subproduto da ação dos cérebros individuais: não haveria uma macro-estrutura que se superporia às decisões dos indivíduos.

O problema é que o resultado dos estudos com personalidade em insetos sociais não nos permite distinguir entre as duas situações acima: os resultados são compatíveis tanto com a existência, quanto com a inexistência de uma macro-estrutura organizando as interações. Assim, temos que ser mais precisos para distinguir a existência de níveis superiores de organização social.

Foi exatamente essa análise precisa e minuciosa das interações sociais que foi publicada recentemente por nosso grupo de pesquisa. Quando analisamos as interações dentro do formigueiro, ou dentro da colmeia, verificamos que em nenhuma das espécies estudadas existe um nível de organização social que autonomamente manipula as decisões dos indivíduos, fazendo-os trabalhar, por assim dizer, por uma causa maior. Formigueiros, cupinzeiros, colmeias, estas estruturas não são super-organismos, ao menos no sentido de terem uma mente social que controla as mentes de seus indivíduos. Elas não apresentam um nível superior (ao do indivíduo) com autonomia para tomar decisões pelo coletivo. Elas constituem, sim, processos emergentes complexos, ou seja, processos cujo resultado global não é previsível a partir apenas do comportamento de suas partes.

Processos cognitivos emergentes certamente aumentam de forma não linear a percepção e inteligência do conjunto. No entanto, esses processos emergentes auto-organizados, por complexos que sejam do ponto de vista dos indivíduos, são simples demais do ponto de vista do funcionamento social. Uma trilha de saúva (um processo emergente) é uma estrutura social auto-organizada, imprevisível do ponto de vista do indivíduo, e que amplia de forma não linear a eficiência do forrageamento (coleta de folhas) ao uniformizar o comportamento dos indivíduos ao redor de uma atividade.

No entanto, do ponto de vista do funcionamento social, uma trilha é uma estrutura simples, e para que haja cognição neste nível social teríamos que ter trilhas inter-comunicantes criando estruturas de retroalimentação entre elas. A escolha entre fontes de alimento, entre duas ou mais trilhas, se dá muitas vezes sem troca de informação entre as trilhas, que são assim quase que independentes umas das outras. Para haver cognição propriamente social teríamos que ter uma teia de trilhas (ou outras atividades sociais auto-organizadas) que formasse uma superestrutura. Uma superestrutura que integrasse informações distintas e conduzisse a um processo decisório social unificado e autônomo (em relação às decisões de cada indivíduo). Sem uma superestrutura informacional, não há um desacoplamento das decisões coletivas em relação às decisões individuais, e assim são efetivamente os indivíduos, e não um coletivo autônomo, que estão no comando. Há personalidade nos indivíduos, mas o coletivo, o coletivo ainda parece mudo … será que, no fundo, não somos em muito semelhantes a essas formigas?

Hilton Japyassú

Para saber mais

Briffa, M., & Weiss, A. (2010). Animal personality. Current Biology, 20(21), R912-R914.

Carere, C., & Locurto, C. (2011). Interaction between animal personality and animal cognition. Current Zoology, 57(4), 491-498.

Japyassú, H. F., Neco, L. C., & Nunes-Neto, N. (2021). Minimal organizational requirements for the ascription of animal personality to social groups. Frontiers in Psychology, 11, 3586.

Webster, M. M., & Ward, A. J. (2011). Personality and social context. Biological reviews, 86(4), 759-773.

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