No livro O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams, o número 42 é a resposta para a “questão fundamental da vida, do universo, e de tudo mais”. No livro, essa resposta foi calculada ao longo de 7,5 milhões de anos por um supercomputador chamado Pensamento Profundo (ou Deep Thought, em inglês). Evidentemente essa é uma história de ficção, pois não existe tal solução simples para questões tão complexas. No entanto, recentemente, um time internacional de cientistas propôs a resposta para uma série de acontecimentos que moldaram nosso planeta e nossa espécie e que, embora pareçam desconectados, são consequência de uma mudança ocorrida no campo magnético da Terra. Essa conjunção de acontecimentos cruciais foi apelidada pelos cientistas de “Evento de Adam”, em alusão ao autor do célebre livro, por ter ocorrido há 42 mil anos antes do presente.
Segundo os autores, o mundo teria experimentado alguns séculos de condições apocalípticas há cerca de 42 mil anos, que teriam se originado na inversão dos polos magnéticos combinada com mudanças no comportamento do Sol. Tal combinação resultou em uma série de eventos, como tempestades elétricas, diminuição da camada de ozônio, ventos solares e mudança climáticas abruptas. O polo norte magnético não tem localização permanente, oscilando perto do polo norte geográfico e deslocando-se ao longo do tempo em virtude dos movimentos do núcleo terrestre. Embora essas oscilações sejam em geral discretas e imperceptíveis, em raras situações há oscilações extremas, como a do Evento Laschamps, já conhecida dos cientistas, mas até pouco sem comprovado impacto na evolução da vida terrestre em nível global. Simulações computacionais mostraram, no entanto, que o campo magnético há 42 mil anos se reduziu a cerca de 6% do atual e que essa perda do campo magnético levou à exposição do nosso planeta à radiação cósmica. Somado a isso, houve uma sucessão de explosões solares atingindo a Terra.
Além dos supercomputadores, antigas árvores da Nova Zelândia também deram pistas importantes sobre a extensão do impacto dessa mudança geomagnética, pois haviam registrado as mudanças ocorridas pelo aumento prolongado dos níveis de radiocarbono atmosférico ao longo dos últimos 40 mil anos. Através de uma nova escala criada a partir do registro das árvores, foi possível conectar registros de mudanças ambientais em cavernas, geleiras e turfeiras ao redor do mundo, tendo sido mostrado que se tratava de um evento em larga escala e global. Durante os séculos de mudança climática, ocorreram alterações nos cinturões de chuvas tropicais, tornando algumas regiões da Austrália áridas e extinguindo parte da megafauna, como os cangurus gigantes. Ao mesmo tempo, o lençol de gelo sobre o Canadá derreteu, fechando a conexão entre Ásia e América. E na Europa neandertais foram extintos pela grande exposição à radiação ultravioleta. Neste contexto, os humanos não teriam sido extintos por terem conseguido se abrigar em cavernas, o que explicaria a explosão de arte rupestre encontrada a partir dessa data, iniciando o período Aurignaciano.
Árvore encontrada dentro de um lago no norte da Nova Zelândia usada no estudo. É um Kauri, parente das nossas araucárias.
A causa da extinção dos neandertais é bastante controversa. Embora a explicação baseada em mudanças climáticas seja já conhecida pela comunidade científica, alguns estudos recentes têm mostrado que, pelo menos na população de neandertais do sul da Europa, essa não parece ter sido a causa de sua extinção. Existe uma variedade de hipóteses bem suportadas para explicar a extinção dos Neandertais, incluindo competição com nossa espécie, na qual teríamos gozado de vantagem por sermos mais eficientes no aproveitamento dos recursos do ambiente; assimilação, já corroborada em parte por dados genéticos que mostram intenso cruzamento entre sapiens e neandertais; desvantagem demográfica, uma vez que se sabe que os neandertais eram pouco gregários e ocupavam um território vasto (das ilhas britânicas à Sibéria); e exposição a doenças trazidas pela migração do Homo sapiens para a Europa, o que teria levado à diminuição gradual da população de neandertais. É provável que as hipóteses, ou mecanismos propostos para extinção de nossa espécie-irmã, não sejam mutuamente exclusivas, e que cada uma tenha tido um peso distinto e variado de acordo com a região e o tempo de extinção dos neandertais.
No mesmo sentido, a correlação direta entre o início da arte figurativa em nossa espécie e a necessidade de abrigo parece um tanto especulativa. Se isso for bem suportado, significaria que esse cataclisma ocorrido há 42 mil anos teria dado origem aos primeiros humanos modernos da Europa, dada a sofisticação subsequente da arte das cavernas evidenciada pelos materiais usados e pelos sinais de autoconsciência representadas pelos artefatos do Período Aurignaciano. Embora essa seja uma visão tentadora, e a evolução da vida no planeta tenha realmente sido impactada pelo Evento de Adam, provavelmente muitos outros fatores contribuíram para a construção biológica e cultural dos humanos modernos.
Tábita Hünemeier
IB/USP
PARA SABER MAIS:
Rebecca Wragg Sykes (2020): Kindred: Neanderthal Life, Love, Death and Art.
Bloomsbury Sigma, 288 pp.