O despropósito da evolução

Mentes e corpos mecânicos poderiam produzir as paisagens ecológicas luxuriantes que hoje se extinguem lentamente, ou teríamos que ter algo mais criativo na origem e manutenção de uma duradoura organização biológica?

É certo que ainda temos fauna e flora luxuriantes. Apesar desta riqueza real, paira sobre este luxo uma sombra. Uma dúvida aflige aqueles que contemplam a beleza de uma ecologia tão em si mesma entrelaçada, aqueles que percebem a sutileza do delicado arranjo entre predadores, presas, parasitas, hospedeiros, comensais, simbiontes. Uma incerteza sobre a continuidade desta beleza atinge aqueles que tem sensibilidade aguçada para entender a raridade, e mesmo a singularidade deste arranjo ecológico que se tece apenas em milhares de milhões de anos, incerteza face à escalada de crimes ambientais que vivemos aqui e agora, com incêndios na amazônia, óleo lançado às toneladas ao mar aberto, exploração desenfreada de minérios gerando passivos ambientais impagáveis, e impunes. Não deixa de ser curioso pensar que nossa mesma sociedade, ultimamente tão fissurada pela busca de punições para crimes de corrupção, seja ela mesma assim tão permissiva com crimes ambientais hediondos, que têm consequências muito mais devastadoras para a vida como a conhecemos, ou como a queremos.

Darwin era uma destas almas sensíveis que se admirava com a beleza do delicado equilíbrio ecológico. Mais que admirar, ele buscou explicar esta fina relojoaria, esta adaptação minuciosa das espécies umas às outras, e ao ambiente, na ausência de um Deus criador. Sua explicação, como a conhecemos hoje, colocava no acaso a razão de ser desta delicada máquina que constitui o organismo vivo. Deus foi substituído pelos dados, por um jogo de azar no qual vez por outra temos uma boa cartada nas mãos, ou seja, por mutações genéticas que vez por outra são benfazejas, ou seja, são selecionadas pelo ambiente. Assim seria que vez por outra nasce uma ave mutante com um bico mais comprido e afilado, que lhe dá vantagem na obtenção de suas presas escondidas em frestas de troncos e rochas. De onde viria este delicado acoplamento entre o bico, comprido e fino, e sua função (obter presas escondidas em frestas)? Viria do acaso de mutações aleatórias, e não de um Deus benfazejo. Agora, quero que notem um detalhe que ficou obscurecido nesta troca de Deus pelo acaso. Quando imbuídos de uma visão religiosa, interpretamos este acoplamento entre os organismos e o ambiente, entre a forma do bico e sua função, interpretamos todo este delicado entrelaçamento da natureza sobre si mesma como fruto de um plano divino, superior, e neste caso o propósito da vida reside no próprio Deus. O sentido da vida seria louvar ao Criador.

Quando o Deus é substituído pelo acaso, na versão Darwiniana que conhecemos, o que acontece com o sentido da vida? Alguns poderiam responder simplesmente que a vida deixou de ter sentido, que os organismos desconhecem qualquer propósito ou intenção interna a eles, visto que apenas o acaso e a seleção natural externa seriam a fonte de sua delicada organização. Assim, a ligação entre as várias espécies de seres vivos, e mesmo sua ligação com o mundo não vivo, a razão de ser do bico da ave, comprido e afilado, sua função, não estaria na ave em si. A ave apenas funcionaria como um robô inconsciente, uma máquina instintiva que repete automaticamente ações das quais ela mesma desconhece o objetivo. Claro, os seres humanos seriam especiais, eles teriam a cultura, que os permitiria despertar deste sono eterno, desta ignorância bestial de espécies sub-humanas. Animais não humanos seriam como que zumbis, que agem sem saber o porquê. Sua razão de ser não está em si, mas no ambiente que selecionou mutantes aleatórios. Animais têm a forma que têm porque no seu passado evolutivo esta forma lhes foi útil, e não porque hoje ela lhes seria útil, ou porque tenham assim eles mesmo planejado esta utilidade.

Colocado assim, desta forma nua e crua, parece um pouco assustador, não? Nossos cães e gatos, vacas e ovelhas, todos zumbis, e apenas nós ali, isolados, com nossos propósitos e intenções reais, atuais, gerando soluções para o momento de hoje e para o nosso futuro planejado. Tamanho isolamento só dá mesmo para gerar roteiro de filme de terror barato. Mas não é que os zumbis não teriam propósito, apenas eles não saberiam o propósito que possuem. É como se tivessem e, ao mesmo tempo, não tivessem propósito. Confuso, não? Esclareço: nossos animais de estimação nos dariam a impressão de terem propósitos, intenções próprias, mas essa seria uma impressão falsa que caberia à ciência Darwiniana desfazer.

Isto que vocês devem estar sentindo agora, se consegui ser didático o suficiente em meu texto, é o que se chamou de um desencantamento do mundo. O mundo encantado, no qual todos vivem uns para os outros em uma harmonia pré-estabelecida por Deus, e portanto perfeita, este mundo foi substituído por um mundo de zumbis no qual apenas nós humanos podemos ver a luz no fim do túnel. Todos competem uns contra os outros, todos querem uns passar a perna nos outros, buscando tirar proveito do outro para melhorar sua aptidão e vencer no jogo da sobrevivência. Além de gerar um profundo desencanto, esta visão de mundo parece também um tanto quanto arrogante, não é mesmo? A humanidade veio para libertar os pobres zumbis de sua ignorância … mas tem algo de errado neste roteiro porque a humanidade está se comportando mais mesmo é como um exterminador do futuro.

Há muito o que se dizer sobre este estado desencantado do mundo Darwiniano. Primeiro, cabe ressalvar que o próprio Darwin não abraçou este desencanto de peito aberto. Jessica Riskin analisou em detalhe todas as versões de “A origem das espécies”, bem como uma vasta correspondência, e concluiu que Darwin oscilou entre uma visão na qual os animais são imbuídos de propósito, e outra na qual eles são seres passivos, zumbis sem intenções. Nas sucessivas versões de “A origem …”, Darwin oscilou entre uma visão mais Lamarckista na qual os variantes (os mutantes) surgem a partir das atividades espontâneas dos organismos, fruto de sua natural capacidade de ajuste (que serviria a propósitos internos), a uma visão mais parecida com a que temos dele hoje, na qual os variantes surgem por acaso e são selecionados. Assim seria equivocado dizermos que somos Darwinistas ao abraçarmos a zumbilândia como visão de mundo. Darwin, ele mesmo, não se decidiu a este respeito, e cortejou seriamente o principal componente do Lamarckismo: o de que há um motor interno aos organismos (uma motivação, um propósito) que direciona o processo evolutivo. O que houve foi que os neodarwinistas, e principalmente os arquitetos da Síntese Evolutiva Moderna dos anos 1950 (Weissman, Fisher, etc), decidiram por Darwin em favor da zumbilândia.

Outro ponto diz respeito ao alcance do desencanto. Alguns poderiam dizer que a metáfora dos zumbis só serviria para os comportamentos instintivos, que fazemos ‘sem pensar’. Mas os animais não seriam apenas máquinas instintivas: eles também aprenderiam, e seu comportamento aprendido seria consciente. O problema deste argumento é que o próprio processo de aprendizagem, segundo os behavioristas e mesmo os ciberneticistas (que usaram as leis de aprendizagem dos behavioristas para construirem robôs que aprendem), foi concebido como um processo de seleção natural. Como a aprendizagem funcionaria? Nosso sistema nervoso produziria comportamentos aleatórios e um deles, por acaso, seria benéfico para nós mesmos. Este processo de respostas aleatórias sendo selecionadas pelo seu efeito positivo para o organismo constituiria, em teoria, o que chamamos de aprendizagem. Agora vejam, o processo de aprendizagem, assim descrito, não é nada mais nem nada menos que uma réplica do processo de seleção natural ‘proposto por Darwin’, só que em uma escala de tempo diferente. Enquanto a aprendizagem ocorreria no tempo de vida de um indivíduo, a seleção natural ocorreria no tempo de evolução da espécie. Se é assim, a aprendizagem não introduziria propósitos na mente do indivíduo pelo mesmo motivo que a seleção natural não coloca na espécie propósitos próprios, voltados para a sobrevivência futura da espécie. Perceba: a seleção natural colocaria, na verdade, propósitos voltados para o passado da espécie, de modo que os animais de hoje seriam marionetes, ou zumbis, controlados a partir de seu passado evolutivo, que é este sim, ao final, sua razão de ser, seu criador. O mesmo valeria para nossos robôs: o propósito deles estaria em nós, seus criadores, e não neles próprios. Mesmo quando os robôs fossem capazes de aprendizagem, seríamos nós os tutores desta aprendizagem, os criadores das regras de aprendizagem. Assim, o desencanto de um mundo neodarwiniano não atinge apenas insetos e outras máquinas potencialmente instintivas: seu alcance é muito maior, e atinge também todos os animais que aprendem, pois a aprendizagem mimetiza a evolução.

A esta altura, você deve estar se perguntando: mas meu Deus do céu (com perdão do trocadilho): onde está o sentido da vida? Como faço para escapar da zumbilândia? Calma, lembre-se que os humanos podem estar de fora da zumbilândia, dada sua capacidade para a cultura. Embora para alguns isso possa ser suficientemente tranquilizador, para outros, a maioria, creio eu, a sensação de filme de terror barato permanece inalterada, e daí talvez decorra o sucesso deste gênero de filmes. Uma forma possível, e simples, de se escapar da zumbilândia, viria da constatação de que a seleção natural não é a única, nem a primeira, e talvez nem a principal fonte de adaptação. Percebam primeiramente que a zumbilândia invadiu esse mundo teórico por conta da dobradinha entre variação aleatória e seleção natural. Se estes dois processos são os principais responsáveis pela forma e pela mente dos seres vivos atuais, não há muito como fugir da zumbilândia. Mas e se outros processos forem também importantes?

Semana passada vimos aqui no Darwinianas, por exemplo, a importância da herança epigenética. A aptidão dos organismos ao ambiente seria fruto, em momentos críticos de sobrevivência, de informações advindas não dos genes (ou seja, de ancestrais mutações aleatórias), mas de epigenes, ou seja, seriam fruto do ambiente atual. Para além da epigenética, já sabemos há tempos da importância de outros fatores, como construção de nicho e herança ecológica, fatores em nada aleatórios, na evolução das espécies, fatores que introduzem uma participação ativa dos organismos no processo evolutivo. Temos também a evolução cultural, outro processo no qual variantes nada aleatórios são passados para as gerações futuras, processo esse, o cultural, que cada vez mais admitimos estar dirigindo a evolução de muitas espécies de animais não humanos.

Podemos também colocar de outra maneira a resposta a esta questão acerca da origem do propósito, das intenções, deste motor interno dos animais. Parece que o ponto fundamental seria saber se minhas intenções derivam de meu passado (se sou uma marionete do passado evolutivo) ou se elas derivam do momento atual e se projetam para meu futuro. Para um evolucionista a questão da origem é básica, e podemos responder a ele evolutivamente, seguindo as pegadas de um estudo recente de Denis Walsh e de Stuart Newman. Pensando na origem da vida, antes mesmo da evolução dos genes, ou seja, antes da possibilidade de existência de qualquer tipo de evolução neodarwiniana, já devia haver algo como um organismo, um organismo sem sistema de herança. Um bom motivo para isso seria que, para que algo se reproduza, esse algo deve antes de tudo existir: assim, a existência do organismo provavelmente surgiu antes de seu sistema de herança. A homeostase, esta capacidade do organismo de se defender das flutuações do ambiente, deve ter surgido antes dos genes. Se assim for, nós vivos, diferentemente dos zumbis, teríamos uma capacidade de ajuste, voltada para a sobrevivência, que antecederia toda e qualquer capacidade de evolução adaptativa. Este organismo primordial teria já um propósito, de sobrevivência básica, de permanência no mundo através de ajustes a mudanças ambientais, antes mesmo de poder ser controlado como uma marionete por seu inexistente passado evolutivo. A homeostase seria a plasticidade, esta capacidade de ajuste que indica a existência de uma meta a ser alcançada, de um alvo a ser defendido, um propósito para a existência, e esta capacidade não viria, no início, dos genes: ela seria uma propriedade emergente da organização original da matéria viva. O propósito seria uma propriedade original interna à matéria viva, ele não seria originalmente imposto à matéria passiva por fora, por pressões seletivas extrínsecas.

Temos assim esperança na existência de um mundo sem zumbis: talvez Darwin estivesse afinal justificado em ter dúvidas. Talvez a evolução seja um processo mais elaborado que a Síntese Evolutiva Moderna imaginou, um processo que permita, afinal, que a vida tenha ela mesma um sentido próprio. Talvez uma teoria evolutiva assim mais completa permita que deixemos de ser marionetes não só de deuses, mas que deixemos de ser marionetes também de nosso passado evolutivo ou ontogenético. Talvez uma teoria evolutiva mais completa permita que sejamos donos de nosso próprio nariz e capazes, afinal, de dar um sentido próprio a nossas próprias vidas.

 

Hilton F. Japyassú

Universidade Federal da Bahia

 

Para saber mais

Walsh, D.M. 2017. Chance caught on the wing. In: Huneman, P. & Walsh, DM. (2017). Challenging the modern synthesis: adaptation, development, and inheritance. Oxford: Oxford University Press.

Riskin, J. 2016. The restless clock: a history of the centuries-long argument over what makes living things tick. The University of Chicago Press.

Newman, S.A. 2017. Toward a Nonidealist Evolutionary Synthesis. In: Huneman, P. & Walsh, DM. (2017). Challenging the modern synthesis: adaptation, development, and inheritance. Oxford: Oxford University Press.

Imagem de abertura: https://www.wallpapervortex.com/wallpaper-46510_steampunk_mechanical_bug.html#.XdPq0S2ZPUI

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