Nos dias de hoje fala-se muito em ideologia. Do que se trata? Ideologias são visões de mundo que ajudam a legitimar o estado das coisas vigente — e consequentemente o controle do poder. As ideologias são conjuntos de ideias que reforçam e propagam visões de mundo. Se aceitas largamente, ideologias justificam determinadas condutas. A ideologia que tiver tido mais sucesso em ocupar o imaginário da população dará subsídio para a visão política que a acompanha.
A ideologia pode ser construída com recurso a muitas ideias. Uma gama de referências culturais, estratégias de educação, influências através da mídia, todas, em conjunto, criam uma visão de mundo que dá sustento àquilo que Noam Chomsky chamou de uma “Fábrica de Consenso”. Para ele, a dócil aceitação por parte dos cidadãos norte-americanos de um estado que favorece grandes corporações e explora muitos dos seus cidadão é explicada por uma intricada rede de ideias, construídas com apoio da mídia. Ambientes ideológicos não são exclusividade dos Estados Unidos: não há dúvidas de que o poderio Soviético do século passado foi também moldado por uma máquina de propaganda de estado que sustentou uma ideologia eficaz para o controle do poder.
Mas ideologias não são novidades do século 20. Voltemos no tempo, para então, mais adiante, retornarmos aos dias de hoje.
Ideologias sustentam a desigualdade
O mundo em que vivemos é extremamente desigual. Há pessoas com acesso a muitos recursos e outras com quase nada. Num ensaio recente, o biólogo norte-americano Richard Lewontin reflete sobre como ideologias ajudam a sustentar tal desigualdade, mesmo diante de inevitável de tendência de haver revolta por parte daqueles que estão do lado fraco da equação. Lewontin nos conduz pela história das diferentes ideologias dominantes.
Para ele, o mundo estático da idade média, em que servos ocupavam posições subservientes e atendiam ao controle de senhores, era tornada “natural” através da ideologia religiosa dominante, segundo a qual essa hierarquia existia pois uma instrução divina havia ordenado as pessoas dessa forma. Imersos na ideologia religiosa, a desigualdade vivida tinha explicação universal.
Essa organização mudou com o surgimento de uma classe burguesa, numa sociedade com um potencial de mobilidade muito maior.Esta mobilidade, nos lembra Lewontin, era necessária para suprir as demandas da nascente classe mercantil. Nesse novo cenário, uma nova ideologia passou a imperar. Nela, indivíduos tinham diferentes potencialidades, e não estavam destinados a permanecer na condição em que haviam nascido.
Se indivíduos não são destinados a permanecer na condição em que haviam nascido, podendo ascender social e economicamente, como explicar a existência da desigualdade? Lewontin argumenta que a nova ideologia trazia uma racionalização para esse estado das coisas. Primeiro, a nova visão do mundo afirmava que indivíduos teriam diferentes “méritos intrínsecos” e nem todos seriam “destinados” a alcançar os mesmos êxitos. Além disso, a ideologia trazia em seu bojo a ideia de que havia uma “natureza humana”, que seria uma tendência natural dentro das sociedades de uma competição pelos postos mais cobiçados. Sob tal visão, a desigualdade que vemos em sociedades modernas não seria nada mais do que o produto de potencialidades diferentes associadas à natural tendência de cada um ascender ao máximo do que é capaz. Segundo a encarnação contemporânea dessa ideologia, potencialidades de indivíduos seriam geneticamente determinadas e a “natureza humana” seria algo intrínseco à nossa espécie, encarregando-se de gerar uma “natural” distribuição de recursos. Dessa forma, a biologia acabava por se tornar um poderoso instrumento de legitimação da desigualdade. A desigualdade seria uma manifestação natural de traços biológicos.
Esse passeio pela história – necessariamente simplificador – serve para nos lembrar como a manutenção do poder e a construção de uma visão de mundo que o sustenta são necessariamente entrelaçadas. A construção dessa visão do mundo – a construção de uma ideologia – se dá através de múltiplas ações. Entre os atores envolvidos, está a ciência (mas não exclusivamente ela).
Ideologias mais próximas do que imaginamos
Lewontin constrói seu argumento sobre a força do determinismo na nossa visão do mundo fazendo um passeio pela literatura. Personagens clássicos de livros de Emile Zola e Charles Dickens comportam-se não de acordo com o meio em que vivem, mas em função de quem são seus progenitores. Oliver Twist, mesmo criado num ambiente de crime, revela traços nobres e gentis, compatíveis com sua origem biológica. Para Lewontin, há na cultura em que vivemos uma natural aceitação da ideia de que diferenças nas potencialidades de cada pessoa possuem uma base genética. A presença dessas ideias na literatura ilustra essa influência.
Será que ainda estamos construindo visões de mundo deterministas? Será que elas permeiam nosso vocabulário, nossa visão de mundo, nos dias de hoje?
Ideologias deterministas nos dias de hoje
Recorro a dois exemplos contemporâneos que ilustram o poder da visão do determinismo genético. A primeira vem do calor da campanha presidencial de 2018, em que o atual Vice-Presidente da República, Hamilton Mourão, deu uma declaração diagnosticando causas das mazelas do Brasil. Segundo ele, a mistura que originou nosso povo representa uma perniciosa combinação:
“Essa herança do privilégio é uma herança ibérica. Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem. Nada contra, mas a malandragem é oriunda do africano. Então, esse é o nosso ‘cadinho’ cultural.”
Começo comentando aquilo de que não discordo. O Brasil é sim um país moldado por diferentes correntes culturais, e manifestações de cada uma têm um papel importante em nossa história, que devemos compreender. Acho, portanto, apropriado especular sobre origens culturais de nossos traços. Os problemas surgem em outras frentes. O primeiro, bastante óbvio, é o caráter pejorativo dos traços atribuídos a indígenas e africanos. E o segundo é o determinismo genético que está implícito na fala.
O que me leva a argumentar que a frase carrega determinismo genético, se o próprio autor refere-se a heranças “culturais”? A meu ver, a fala explica a identidade de pessoas com base em sua ancestralidade remota (ter antepassados indígenas ou africanos), ao invés de experiências de vida mais imediatas. Num país como um Brasil, é bastante óbvio que afro-descendentes possuem traços sociais que foram moldados, em grande parte, por suas histórias de vida, suas raízes num passado recente de escravidão, sua condição como camada mais pobre da sociedade e com exposição à violência. Isso não é a mesma coisa que ter “herdado” traços africanos, num sentido genético ou cultural. O elemento chave é a vivência da condição de afro-descendente no contexto da sociedade brasileira.
Me parece bastante claro, portanto, que o discurso feito é determinista: diferentes povos possuem traços que são a eles inerentes, e serão passados aos descendentes, como quaisquer traços genéticos. O próprio autor da frase, ao se identificar como indígena, parece buscar uma evidência de que não há racismo na afirmação, e que ele próprio portaria essa “indolência”. Mas por que isso seria o caso, se ele nunca viveu como um indígena? Se nasceu no Rio Grande do Sul, longe daquela cultura? A resposta é que ele assume que o comportamento que ele identifica como característico de indígenas teria sido herdado.
O problema é que a ciência não sustenta esses argumentos. Complexos traços comportamentais possuem um imenso componente ambiental, dependendo mais da história de vida do que dos genes. A frase amplifica e transmite uma visão de mundo determinista, mas sem base científica sólida. Segundo Lewontin, mesmo que potencialmente ingênua ou livre de más-intenções, colocações como a de Mourão reforçam uma visão de mundo em que o determinismo genético impera, segundo o qual diferentes pessoas (ou povos) têm a eles destinados diferentes extratos na sociedade. Trata-se, portanto, de uma fala com uma inegável carga ideológica.
A ideia aqui não é fazer uma crítica individual à fala do então candidato a vice-presidente, mas chamar a atenção para o fato de que a visão de mundo determinista por ela expressa é recorrente em nossa sociedade. E isso não deve nos surpreender: cientistas renomados endossam tal visão, como é o caso de James Watson, laureado com o prêmio Nobel e um dos proponentes do modelo da estrutura do DNA até hoje mais aceito, que repetidamente afirmou haver diferenças intrínsecas na capacidade de aprendizado entre povos de diferentes continentes, chegando a afirmar que havia pouca utilidade em investir na educação de povos africanos. (Felizmente nem toda a comunidade científica assiste pacificamente esse tipo de afirmação: por causa dessas afirmações, Watson foi destituído de seu título honorífico no Cold Spring Harbor Laboratories no ano de 2019).
Vou agora para um segundo exemplo, trocando a posição de um militar brasileiro pela das modernas empresas do Vale do Silício, na Califórnia. Lá duas grandes empresas se uniram para oferecer um novo produto aos seus clientes. De um lado está a Ancestry.com, que através da análise de seu material genético estima os locais de origem de seus antepassados. Do outro está a Spotify, que oferece serviços de streaming de música. Juntas, colocaram no mercado um novo produto, anunciado com a pergunta “Se você pudesse ouvir seu DNA, como ele soaria?”. A explicação mais detalhada do que estão oferecendo vem a seguir:
“Com um teste do AncestryDNA você pode descobrir mais sobre você mesmo — aprendendo desde sua etnia até conectando-se com parentes distantes. E agora seus resultados do AncestryDNA podem tocar uma exclusiva seleção musical no Spotify, inspirada por suas origens”.
Eis o roteiro: você aprende sobre suas origens através do seu DNA (algo essencialmente correto, dado que suas origens históricas – pelo menos as geográficas – estão sim registradas no seu genoma; veja post anterior tratando das implicações); você descobre quem são seus parentes; você se diverte ouvindo músicas “inspiradas em suas origens”. Esse último pacote envolve a Spotify parear a sua ancestralidade com músicas vindas da região do mundo onde residiram seus ancestrais.
É claro que tudo isso pode ser visto como uma divertida brincadeira, mas o tema do que constitui uma “origem” e o papel de seu genoma em definir “quem você é” volta a surgir. A meu ver, há um subtexto implícito aqui, que é o de que origens históricas carregadas no seu DNA constituem uma potencial referência de identidade pessoal importante. Saber que carrego trechos do genoma típicos de povos da Europa do leste deveria, por essa ótica, tornar interessante acrescentar ao meu perfil musical compositores daquela região. Por que? Será que esse esforço não acaba por reforçar uma vida em “bolhas culturais”? É natural esperar que pessoas que carregam genomas africanos ouçam Miriam Makeba e aquelas que carregam genomas bretões ouçam Beatles? Qual a razão para reforçar o componente genético de nossa identidade, se ela é construída de modo tão multifacetado, numa sociedade com tecnologia capaz de, cada vez mais, integrar culturas distintas?
A resposta trivial é que a Ancestry.com é uma empresa que busca origens genéticas, e está enfatizando esse componente de identidade. O meu ponto aqui não é afirmar que saber sobre nossas origens não tenha interesse. Mas o foco crescente nesse componente da identidade – explicitado pelo anúncio que nos encoraja a ouvir música associada às nossas origens genéticas – é a meu ver mais um ingrediente na construção de uma visão de mundo em que identidades são majoritariamente determinadas geneticamente.
Preocupação excessiva?
Estarei exagerando, ao enxergar um viés ideológico favorecendo o determinismo genético numa descompromissada referência à cultura popular (na fala de Mourão) ou uma inocente diversão (no caso da Ancestry e Spotify)?
Eu argumentaria que, por estarmos imersos numa cultura em que essas noções são corriqueiras, temos dificuldade em perceber como ela molda nosso olhar.
Hoje identificamos o tom racista de textos das primeiras décadas do século, alertando sobre os riscos de migração de negros e orientais, pois “dão resultados desastrosos os cruzamentos entre raças antagônicas.” Porém, tal visão, ainda que desprovida de apoio científico, representou uma das correntes de pensamento na saúde pública e influenciou políticas governamentais. Ela foi propalada por médicos e eugenistas, que defendiam políticas ativas para a melhoria da “saúde genética” dos brasileiros.
A ciência não é feita no vazio. As ideias por ela geradas são absorvidas pela sociedade e narrativas são moldadas, ideologias são construídas. A visão de que traços de caráter, de habilidades, de potencialidades são biologicamente determinados e hereditariamente transmitidos é uma dessas ideias. A ciência das bases genéticas de habilidades e potencialidades ainda engatinha e não sustenta o determinismo genético em sua forma extrema, pois é bastante claro que variação genética explica uma fração modesta de muitos comportamentos, havendo um grande efeito do ambiente. A grande ênfase dada nas interpretações deterministas distancia-se do conhecimento empírico.
Cabe a nós ver a ciência – e entre suas áreas, a genética – como atividade humana que envolve a interação de diferentes grupos sociais. Internamente à prática científica temos a comunidade de cientistas que, de modo organizado, dirigem seu ceticismo às novas ideias, constantemente avaliando-as. Aquilo que chamamos de “conhecimento” é no fundo o resultado daquilo que a comunidade científica chancelou, aplicando suas ferramentas teóricas e o escrutínio por parte de especialistas treinados. Mas essa não é a única comunidade com a qual a ciência convive: cientistas vivem em sociedades mais amplas, que se estendem para além de seu conjunto de colegas, e sobre eles exercem pressões, cobram resultados, expressam opiniões. Há uma via de duas mãos, com ciência e sociedade interagindo, influenciando-se continuamente. A forma como ideias vindas da genética moldam nosso olhar sobre questões sociais ilustra isso.
Diogo Meyer
(Universidade de São Paulo)
Para saber mais
Lewontin, R. 2017. (Not) born this way.
Lewontin, R. & Levins, R. 1985. The dialectical biologist. Harvard University Press.
Nancy Stepan Leys. The hour of eugenics. 1992. Cornell University Press.
Crédito da imagem: https://philosophyandpolity.wordpress.com/2011/05/21/genetic-determinism/
Uma consideração sobre “A genética pode ser uma arma política?”