Brasis: Diversidade e Evolução da População Brasileira

O Brasil é um país de extensão territorial continental, formado pela mistura de diversos povos que aqui se encontraram. Estudos genéticos recentes estão tentando resgatar detalhes desses processos migratórios e da dinâmica de miscigenação que moldou a população atual brasileira.

A população brasileira se distingue da dos demais países latino americanos. Tal diferenciação é resultado do intrincado processo de colonização e ocupação do território brasileiro. Historicamente, são três os principais fatores que tornam a população brasileira única dentro da América Latina. Primeiro, o processo de miscigenação no Brasil ocorreu devido ao encontro de três principais grupos continentais: nativos americanos, uma população diversa biológica e culturalmente, e que habitava há mais 12 mil anos o atual território brasileiro; europeus, que chegaram massivamente ao Brasil em diferentes períodos de sua história, sendo principalmente portugueses no século XV, e italianos e alemães no século XIX; e africanos, trazidos compulsoriamente ao Brasil entre os séculos XV e XIX. Nos demais países latinos, o processo de miscigenação ocorreu basicamente entre residentes nativos americanos e conquistadores espanhóis.

O segundo fator peculiar na formação da população brasileira é o isolamento dos nativos americanos no que se refere à sua participação na composição atual da população brasileira.

O terceiro fator diz respeito à política de branqueamento, uma ideologia que era amplamente aceita no Brasil entre 1889 e 1914, e que visava diminuir o componente africano da população por meio do incentivo da imigração europeia para algumas regiões do Brasil. Como consequência de tal ideologia, somada à situação política e econômica na Europa naquele momento, o Brasil recebeu entre 1889 e 1934 cerca de 4 milhões de imigrantes – alemães, italianos e portugueses em sua maioria. Tal número se equipara ao de africanos trazidos forçosamente para Brasil ao longo de quatro séculos de escravismo.

Os fatores históricos citados acima, somados à extensão continental do território brasileiro, tornam o Brasil um país não só miscigenado e com diferentes dinâmicas de mestiçagem em cada região, mas também um país multiétnico, dado que uma parte representativa da população brasileira atual ainda se comporta biológica e culturalmente como um grupo ancestral continental. Nativos americanos, devido ao seu isolamento em relação às outras populações que aqui chegaram, e imigrantes europeus e asiáticos recentes (após 1900) são dois exemplos de etnias isoladas dentro do país.

No que se refere à investigação da ancestralidade genética da população brasileira, não existe nenhum estudo que possa ser dito representativo de toda essa população, dado que somos hoje 200 milhões de pessoas distribuídas em mais de 8 milhões de quilômetros quadrados não povoados continuamente. No entanto, recentemente dois grandes consórcios (EPIGEN e CANDELA) estudaram diferentes populações de diversas regiões brasileiras com o intuito de entender o dinâmico processo de mestiçagem das diferentes populações que se formaram ao longo dos últimos cinco séculos.

Atualmente os avanços em estudos genômicos permitem apresentar com certa precisão informações sobre a ascendência genética de um indivíduo, podendo revelar as linhagens fundadoras de uma população e como se deu a introdução de diferentes linhagens ancestrais ao longo do seu processo de formação. Um estudo recente do consórcio EPIGEN analisou a informação genômica de mais de 6.000 mil brasileiros de três cidades pertencentes a diferentes regiões do Brasil – Bambuí, em Minas Gerais, Pelotas, no Rio Grande do Sul, e Salvador, na Bahia – e apresentou resultados interessantes em relação à dinâmica de mestiçagem encontrada em cada região. Tal estudo foi capaz de detectar as diferentes ondas migratórias formadoras de cada população, ou seja, foi capaz de decompor a variabilidade africana e europeia que chegou ao Brasil, mostrando de quais regiões do continente africano e europeu, e em que período, vieram tais ondas migratórias.

Os resultados desde estudo vão ao encontro dos dados históricos, mostrando um maior percentual de linhagens genéticas vindas do norte da Europa no Rio Grande do Sul, provável consequência da imigração europeia recente, e um alto percentual de linhagens genéticas ibéricas no centro e nordeste do Brasil. Em relação à ancestralidade africana, Salvador apresenta majoritariamente linhagens Iorubá (oeste africanas), enquanto Bambuí e Pelotas apresentam mais linhagens Bantu (centro-oeste africanas).

O resultado mais surpreendente desse estudo está na tentativa de estimar os tempos de contato e miscigenação entre os três grupos ancestrais (africanos, europeus e nativos americanos). As análises realizadas nesse trabalho mostraram que enquanto a mestiçagem entre africanos e europeus é comum e constante, ocorrendo em maior ou menor grau dependendo da região, a miscigenação entre nativos americanos com qualquer um dos outros grupos é praticamente inexistente após os dois primeiros séculos de colonização, explicitando o isolamento indígena dentro da sociedade brasileira como um processo histórico antigo e formador da população atual.

Outro estudo recente, que analisou pouco mais de 1500 indivíduos do Brasil residentes nas regiões sul, nordeste e norte, centrou-se em estudar a ancestralidade genética desses indivíduos e sua relação com a percepção da ancestralidade. Para tanto foram coletadas informações de autopercepção de ancestralidade baseada em características físicas (cor de pele, cabelo, olhos), genealogia familiar e material biológico para análises genéticas. Os resultados gerais em relação à ancestralidade concordam com os encontrados no estudo do EPIGEN, mostrando alta ancestralidade europeia na população brasileira geral (aproximadamente 80%), mas com marcada variação regional, sendo a ancestralidade africana mais alta na região nordeste (30-40%), e a ancestralidade nativo americana mais alta na região norte (20-30%), quando comparadas com as demais regiões.

No entanto, o resultado mais interessante foi a discrepância entre a autopercepção de ancestralidade e a ancestralidade genética da população brasileira quando comparada com outras populações latino-americanas. Os indivíduos brasileiros analisados nesse estudo se auto percebiam muito menos europeus do que o eram em todas regiões estudadas, sendo que tal percepção não tinha uma relação direta com a cor de pele, dado que os índices de melanina quase não variaram entre os indivíduos que se consideravam brancos, mestiços ou indígenas. Provavelmente o que explica esse fato é a construção da imagem nacional como mestiça, com a perda de referências ancestrais com o passar do tempo.

Embora os resultados de estudos genéticos sejam de grande importância para desvendar o perfil populacional dos tantos Brasis que habitam nosso território, eles também trazem consigo um resgate histórico, principalmente para os afro-brasileiros em relação à sua origem, dado que quase todos os documentos relativos à origem dos escravos trazidos para o Brasil foram incinerados após o término do escravismo colonial, deixando os descendentes dos africanos trazidos sem nenhuma referência quanto ao local de origem de seus antepassados. Tais estudos, além de nos mostrarem uma fotografia instantânea da população brasileira atual, sinalizam os caminhos políticos e sociais que formaram o povo brasileiro.

Tábita Hünemeier (Instituto de Biociências, USP)

Imagem: Operários (Tarsila do Amaral, 1933)

Fonte: http://virusdaarte.net/tarsila-operarios/

PARA SABER MAIS:

Lilia Moritz Schwarcz e Heloísa Starling (2015) Brasil: Uma Biografia. Companhia das Letras, Brasil.

 Salzano & Sans (2014) Interethnic admixture and the evolution of Latin American populations. Genet Mol Biol 37: 151–170.

Cerqueira et al. (2014) Implications of the Admixture Process in Skin Color Molecular Assessment. PLoS One 9(9): e109451.

Adhikari et al. (2016) Admixture in Latin America. Curr Opin Genet Dev 41:106-114.

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