O número de piratas vem diminuindo desde o século XVIII, simultaneamente com o aumento da temperatura global. Dito de outra maneira, existe uma relação inversa entre o número de piratas no planeta e o aumento da temperatura global. Tal fato poderia ser explicado de três maneiras:
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Os piratas não se adaptaram ao aumento da temperatura e foram eliminados por seleção natural da face da Terra.
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A correlação é mera coincidência. A relação entre duas variáveis quaisquer pode ser positiva (quando uma aumenta, a outra aumenta), negativa (quando uma aumenta, a outra diminui), ou nula (não importa o que aconteça com a variável, a outra aumenta ou diminui), mesmo que não exista qualquer relação de causalidade entre elas. Sendo assim, duas variáveis podem estar associadas meramente ao acaso.
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Existe uma terceira variável que explica a associação entre as duas variáveis estudadas. Por exemplo, a Revolução Industrial gerou um aumento nas emissões de gases do efeito estufa, o que acarretou um aumento na temperatura global, e ao mesmo tempo desencadeou uma série de transformações econômicas e políticas que tornaram a pirataria uma atividade inviável.
Das três explicações possíveis, a primeira é uma explicação causal, muito usada pelos adaptacionistas para atribuir um sentido evolutivo à associação encontrada. Esse tipo de enfoque, no qual é atribuído à seleção natural um papel causal e uma característica é tratada como adaptação a priori, sem um teste científico apropriado, exerceu grande impacto na história da Biologia, mas, desde os anos 1980, tem sofrido várias críticas, o que diminuiu a aceitação de explicações baseadas na seleção natural sem evidência suficiente. No entanto, tais explicações continuam sendo propostas, especialmente em estudos que se distanciam do pensamento evolutivo contemporâneo, confiando em modelos evolutivos ultrapassados. As implicações de tais hipóteses adaptacionistas têm sido especialmente importantes, e algumas vezes catastróficas, principalmente quando aplicadas aos comportamentos e às condutas morais ou éticas dos indivíduos e das sociedades humanas.
É provável que tanto a genética quanto a seleção natural tenham um papel importante no comportamento humano, assim como o têm no caso de muitas outras características complexas, como por exemplo a resposta imunológica ou a habilidade física para praticar esportes. No entanto, quando a ciência tenta explicar mecanismos envolvidos em fenômenos complexos, sempre é necessária uma avaliação cuidadosa, caso a caso, sem aceitar a simples presença de uma associação estatística como prova de uma relação de causa e efeito. O pensamento reducionista tem sido criticado, desde a formulação da estatística moderna por Karl Pearson e Ronald Fisher, sob a ideia de que “a correlação entre duas variáveis não implica uma relação de causa e efeito entre as mesmas”. Caso tal premissa não seja considerada, facilmente podemos ser induzidos a erros grosseiros que, de maneira simplista, exageram o papel de fatores aparentemente relacionados, com base no que não passa de uma associação espúria, como no exemplo da extinção dos piratas devido às mudanças climáticas.
Ao longo dos últimos anos, uma série de artigos científicos tentaram mostrar que um traço craniofacial específico – a relação entre a largura e o altura do rosto – pode predizer se um indivíduo do sexo masculino terá ou não condutas pouco éticas ao longo de sua vida. A partir de dados experimentais obtidos em diferentes grupos, como, por exemplo, jogadores de hóquei sobre o gelo e estudantes universitários, foi sugerido que homens com rostos mais largos eram percebidos pelos demais como mais antiéticos e que, em situações simuladas com jogos de dados, estes apresentavam maior tendência a trapacear do que os homens com faces mais estreitas. Mas, como teria evoluído esse tipo de comportamento? Os autores especularam que a suposta relação entre tais características faciais e o comportamento antiético poderia haver sido selecionada em conjunto com comportamentos de dominância por seleção sexual. Em outras palavras, ao longo da história evolutiva de nossa espécie, as mulheres teriam preferido homens dominantes, que por uma relação indireta com a quantidade de testosterona teriam rostos mais largos, e juntamente com esse fenótipo facial teria sido selecionado também o comportamento antiético.
Embora alguns dos artigos mencionados acima tenham sido publicados em revistas científicas de prestígio, as correlações encontradas nos mesmos são sempre muito fracas e explicam apenas uma proporção muito baixa da variabilidade existente. Considerando as interpretações socialmente perigosas que podem ser dadas a essas hipóteses adaptacionistas, é fundamental avaliá-las com todas as ferramentas analíticas disponíveis. Em concordância com essa ideia, um estudo publicado em 2013 usou uma base de dados que incluía 4.960 indivíduos pertencentes a 94 populações humanas de diferentes continentes, diferentes contextos culturais, estilos de vida e organização social, para testar a hipótese de seleção sexual descrita acima. Para que exista seleção sexual numa população é imprescindível a presença de dimorfismo sexual para a característica testada, ou seja, neste caso específico, homens e mulheres obrigatoriamente deveriam ter uma diferença significativa nas proporções de largura e altura da face. Somado a isso, seria esperado que homens com rostos mais largos tivessem um valor adaptativo mais alto, deixando mais descendentes do que homens que não apresentam tal característica. Os autores não encontraram nenhuma evidência que corroborasse a hipótese adaptacionista para essa característica facial. Nesse mesmo estudo, foi analisado em paralelo uma grande base de dados craniofaciais de indivíduos que haviam cometido delitos com diferentes graus de gravidade, onde também não se encontrou nenhuma correlação entre o formato do rosto e comportamentos antissociais. Pode-se dizer então que o único estudo que testou o papel da seleção sexual, bem como analisou dados reais de pessoas com má conduta social, não encontrou nenhuma evidência de qualquer correlação que possa ser justificada do ponto de vista evolutivo entre comportamentos antiético e largura da face.
Desde a metade do século XIX, existe um interesse recorrente em predizer as qualidades éticas de um indivíduo a partir de seu aspecto físico. Esse determinismo biológico respaldou o movimento eugenista, que visava melhorar a espécie humana através da esterilização de criminosos, minorias étnicas e pessoas com deficiência mental. No final do século XIX, Cesare Lombroso, um médico de família judaica nascido na Itália, desenvolveu um critério de classificação dos indivíduos criminosos com base em suas características físicas. Lombroso considerava que existia uma relação direta entre alguns traços morfológicos e a periculosidade e a conduta moral de uma pessoa, e que tal correlação era inata e imutável. Algumas décadas depois de sua morte, suas ideias foram recicladas e enaltecidas por Josef Mengele, e usadas para o extermínio de milhões pessoas durante a Segunda Guerra Mundial, principalmente judeus, ciganos, homossexuais e deficientes físicos.
Ao longo da história dos séculos XX e XXI, a mesma biologia usada para justificar tais atrocidades cumpriu seu papel e derrubou as crenças eugenistas, ao mostrar que aspectos como o comportamento e a moralidade não estão ligados de maneira determinista e imutável à informação genética dos indivíduos, mas sim que estes são fenótipos plásticos, moldados pela educação e pelo contexto sociocultural. No entanto, ainda é recorrente que ideias dessa natureza aflorem de tempos em tempos na literatura científica. As implicações sociais e políticas que podem ter tais publicações são vastas, podendo gerar um aumento do preconceito racial, dos casos de discriminação e da intolerância e, portanto, devem ser combatidas na comunidade acadêmica por meio da constante refutação científica de hipóteses deterministas e adaptacionistas.
Figura1: Ilustrações do livro Vaught’s Practical Character Reader, de L. A. Vaught, publicado em 1902. (Fonte: http://publicdomainreview.org/collections/vaughts-practical-character-reader-1902/)
Tábita Hünemeier (Instituto de Biociências, USP)
Rolando González-José (CENPAT/CONICET, Argentina)
PARA SABER MAIS:
Gould, S. J. (2014). A Falsa Medida do Homem. WMF Martins Fontes Editora, São Paulo, 384pp.
Ferreira, C. F. & Patino, C. M. (2015) O que realmente significa o valor-p? Jornal Brasileiro de Pneumologia 41(5): 485.
Baker, M. (2016). Statisticians issue warning over misuse of P values. Nature 531: 151.