Há cerca de um ano, o neurocientista britânico Oliver Sacks se despediu aos 82 anos, após um câncer anunciado, mas, antes disso, nos brindou com uma autobiografia recheada de tudo que seus leitores e admiradores mereciam. Em Sempre em Movimento – Uma vida (Companhia das Letras, 2015), Sacks nos oferece uma narrativa pessoal rica e corajosa. Os leitores acostumados com suas narrativas de casos clínicos e com a figura de tímido médico e pesquisador se surpreenderão com sua paixão por motocicletas e viagens, sua juventude de competidor (e ganhador) de levantamento de pesos, seu grande interesse pelas cicadáceas, cefalópodos, samambaias e minerais, suas experiências com drogas e sua homossexualidade. Contudo, para além de todas as surpresas sobre sua vida pessoal, encontramos muito sobre a história de suas obras, suas referências e sua relação com a ciência.
Sacks ficou famoso mundialmente por seus best sellers O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu (Companhia das Letras, 1997) e Um Antropólogo em Marte (Companhia das Letras, 1995), nos quais apresenta estudos de casos de pacientes afetados por autismo, tumores, síndrome de Tourette, doenças cardiovasculares, entre outros. Entretanto, talvez seja ainda mais lembrado por Tempo de Despertar (Companhia das Letras, 2015), obra na qual descreve de maneira emocionante o comportamento de pacientes com encefalite letárgica (conhecida também como doença do sono) que despertaram de seus estados catatônicos, por um tempo, após administração da droga L-DOPA. Esse livro virou filme, com interpretações brilhantes de Robin Williams e Robert De Niro.
Sacks conquistou seus leitores pela simplicidade e elegância de sua narrativa, descrevendo seus casos clínicos e falando sobre ciência com arte. Em Tio Tungstênio (Companhia das Letras, 2002), por exemplo, conta sua infância recheada de perguntas e experimentos sobre química e é capaz de seduzir até mesmo aqueles que costumam fugir dessa disciplina, em cada etapa de suas descobertas acerca das propriedades da luz, eletricidade, calor, átomo, raios-x, radioatividade, fotografia, entre outras. Ele nos apresenta de forma brilhante a história da química, passando por nomes como Lavoisier, Mendeleiev, Marie Curie, Robert Boyle e Niels Bohr. Ele mesmo se descreve como:
“um narrador, um contador de histórias. Desconfio que o gosto pela narrativa é uma disposição humana universal, que acompanha as nossas capacidades de linguagem, de consciência de si e de memória autobiográfica”.
Rememorar sua vida foi facilitado pelo fato de que, desde jovem, assim como os naturalistas do século XIX, manteve o hábito de tomar notas e escrever diários.
O início, contudo, como ele mesmo conta, não foi nada fácil, em sua primeira publicação, Enxaqueca (Companhia das Letras, 2015), ele sofreu críticas e ameaças de seu chefe e mentor sobre o tema, Arnold P. Friedman, que quase o levaram a desistir. Friedman via Sacks como uma espécie de filho brilhante, mas aconteceu algo visto em outros episódios na história da ciência, como, por exemplo, entre Humphry Davy e Michael Faraday, e também com o astrofísico Arthur Eddington e seu brilhante pupilo Subrahmanyan Chandrasekhar: primeiro, o mestre oferece todo tipo de apoio e encorajamento a seu discípulo, depois tenta bloquear sua carreira.
São muitos os relatos fascinantes em Sempre em Movimento, mas, entre todos, são particularmente ricas as narrativas de Sacks acerca de sua relação com outros homens de ciência. Ele nos conta como ficou amigo e debateu muitos temas com Francis Crick, um dos proponentes do modelo da dupla hélice e também estudioso da consciência. Dedica várias páginas à sua relação com o paleontólogo Stephen Jay Gould. Reconhece a grande influência do psicólogo e neurologista russo Alexander Romanovich Luria. E narra como o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina, Gerald Edelman, o influenciou com sua teoria sobre a consciência.
Considerado o fundador da neuropsicologia, Luria foi uma marcante influência na vida de Sacks, por seu estilo de narrativa. Ele conta que, ao ler um livro de Luria pela primeira vez, acreditou estar lendo um romance, e que só se deu conta depois de que estava diante de narrativas de casos reais:
“o esforço de Luria para combinar o clássico e o romântico, ciência e narrativa se tornaram meus… ele alterou o foco e a direção da minha vida, servindo como um exemplo não só para Tempo de Despertar , mas para tudo que eu escreveria.”
Sacks nunca conheceu Luria pessoalmente, mas discutiram muito através de correspondências. Certa vez, quando Sacks estava se recuperando de um acidente com o joelho, passando por toda uma nova experiência acerca das bases neurológicas da identidade corporal, e em dúvida se escreveria a respeito de sua experiência e pesquisas, um telegrama objetivo de Luria foi essencial: “Faça isso”, disse ele, e encorajou Sacks, sugerindo que ele seria pioneiro em uma nova visão clínica sobre desordens periféricas. Mais tarde Sacks publicaria Com uma Perna Só (Companhia das Letras, 2003), relatando sua condição de paciente e apresentando explicitamente sua visão antirreducionista, sistêmica, do cérebro.
Edelman propiciou a Sacks, através de sua teoria selecionista sobre desenvolvimento e função cerebrais, conhecida como darwinismo neural , uma nova maneira de pensar sobre como o cérebro se desenvolve, dando origem à mente e consciência humanas. Para Sacks, o darwinismo neural é “a explicação mais poderosa e elegante de como nós, humanos, e nosso cérebro construímos nossos próprios eus e mundos individuais”. Em outra passagem, Sacks cita a metáfora da consciência como uma orquestra, proposta por Edelman, ratificando mais uma vez sua própria visão sistêmica e antirreducionista:
“Os músicos são conectados. Cada músico, interpretando a música individualmente, constantemente modulando e sendo modulado por outros. Não há interpretação final ou mestre; a música é criada coletivamente, e cada performance é única”.
Esta é a imagem do cérebro consciente de Edelman, como uma orquestra, um conjunto, mas sem condutor, uma orquestra que faz sua própria música, diz Sacks.
Stephen Jay Gould é descrito por Sacks como alguém que compartilhava seu profundo amor pela história natural e história da ciência. Ele disse que ficou fascinado ao ler o livro Vida Maravilhosa (Companhia das Letras, 1990), no qual Gould narra de maneira surpreendente a gama de formas de vida produzida na explosão do Cambriano, há mais de 500 milhões de anos, e chama a atenção para o grande papel do acaso na evolução. Resumindo: se o filme da evolução pudesse ser rodado novamente, sem dúvida a história seria diferente a cada vez:
“Eu fiquei tão excitado com a visão de Gould sobre evolução que, ao ser perguntado por um jornal inglês sobre o que mais gostei de ler em 1990, eu selecionei Vida Maravilhosa “.
Sacks e Gould se corresponderam durante anos, sem nunca se conhecerem pessoalmente. Em mais um episódio fortuito, os dois foram convidados por uma televisão holandesa para uma série de entrevistas. Questionados individualmente, antes do evento, acerca de se conhecerem, escreveram para a produção:
Sacks: “Eu nunca o conheci, embora tenhamos nos correspondido. Mas, mesmo assim, eu penso nele como um irmão.”
Gould: “Eu quero desesperadamente conhecer Oliver Sacks. Eu o vejo como um irmão, mas nunca nos encontramos.”
O encontro casual entre Sacks e Gould colocou lado a lado dois grandes homens de estilos de escrita muito parecidos, dois cientistas e intelectuais respeitados e que deixaram contribuições generosas e excelentes à ciência. Depois desse evento eles passaram a conviver, revisaram mutualmente seus trabalhos, discutiram, citaram-se diversas vezes e construíram uma grande amizade baseada em admiração mútua. Em uma passagem de sua autobiografia, Sacks revela que, em um de seus aniversários, Gould e sua esposa, sabendo de sua paixão pelos elementos químicos, organizaram a festa e pediram que cada pessoa viesse vestida como um elemento, “Steve estava de Xenônio, um gás nobre”, recorda ele com carinho.
Certa vez Sacks resumiu muito bem como as belezas naturais se tornam ainda mais interessantes à luz da ciência:
“O que tenho a dizer é que o arco-íris fica ainda mais bonito se conheço óptica; o sol, ainda mais fascinante se sei que se trata de uma espécie de máquina nuclear. Essas descrições científicas tornam a natureza ainda mais rica e maravilhosa”.
Não é possível prever ainda qual lugar Sacks ocupará na história da ciência, isso só o tempo dirá. O certo é que deixou saudade, mas sua presença continua disponível em sua rica produção, com a qual temos a sorte de contar, inclusive com diversas obras traduzidas ao português:
“Não consigo fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é a gratidão. Amei e fui amado, recebi muito e dei algo em troca, li, viajei, pensei, escrevi. Tive meu intercurso com o mundo, o intercurso especial dos escritores e leitores”.
Foi o que disse ele em um dos ensaios escritos e publicados pelo New York Times nos seus últimos meses de vida, editados no Brasil com o título Gratidão (Cia das Letras, 2015).
Foto: Oliver Sacks parado na beira da estrada para tomar notas – imagem do livro Sempre em Movimento – Uma vida
Fabiano Vieira
Para saber mais:
GOULD, S. J., McGARR, P., & ROSE, S. P. R. The Richness of Life: The Essential Stephen Jay Gould. New York: Norton. 2007.
GOULD, S. J. The Structure of Evolutionary Theory. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2002.
SACKS, O. Com uma Perna Só. São Paulo: Cia das Letras, 2003.
SACKS, O. Enxaqueca. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
SACKS, O. Gratidão. São Paulo: Cia das Letras, 2015.
SACKS, O. How I got to know Stephen Jay Gould: http://www.webofstories.com/play/oliver.sacks/212;jsessionid=B960E93DBE3C3C3FAA8854703B07E359
SACKS, O. O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
SACKS, O. Sempre em Movimento – uma vida. São Paulo: Cia das Letras, 2015.
SACKS, O. Tempo de Despertar. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
SACKS, O. Tio Tungstênio. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
SACKS, O. Um Antropólogo em Marte. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
SACKS, O. Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
SILVERS, R.B. Histórias Esquecidas da Ciência. São Paulo: Paz e Terra, 1997.