Muitas aves se reproduzem em um local e, durante o outono e inverno, percorrem longas distâncias em busca de alimento em regiões onde as condições são mais favoráveis. Conheça um pouco mais sobre esse fenômeno fascinante, e como seu estudo pode conectar cientistas e cidadãos em ações de conservação e produção de conhecimento.

Migração do ganso da cara branca (Branta leucopsis) durante o outuno na Finlândia. Thermos – Own work, CC BY-SA 2.5, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1387483
A vida na Terra é regida por ciclos, dos nutrientes que circulam pelos ecossistemas, das alternâncias entre dia e noite, e das estações que se repetem anualmente. Esses ciclos funcionam como um calendário natural para diversas espécies que realizam movimentos sazonais, ou seja, deslocamentos que ocorrem em períodos específicos do ano e se repetem regularmente. Na biologia, chamamos esses movimentos de “migração”. Eles são realizados por espécies que se reproduzem em um local e, durante o outono e inverno, percorrem longas distâncias em busca de alimento em regiões onde as condições são mais favoráveis à sobrevivência.
Esses movimentos sempre fascinaram sociedades humanas, que observavam a chegada e partida das aves como sinais de mudanças no clima e, muitas vezes, como marcadores do calendário agrícola. Para os Kawaiweté, povo indígena do Xingu, a chegada das andorinhas anuncia o início da temporada de chuvas. Com o avanço do desmatamento e a consequente alteração no regime de chuvas, a presença e o número dessas aves avistadas vem mudando, revelando como mudanças ambientais afetam diretamente as migrações. Afinal, para onde as aves vão e por que partem são perguntas tão antigas quanto a própria relação humana com a natureza.
Na Grécia antiga, Aristóteles propôs uma teoria curiosa: acreditava que algumas aves desaparecidas no inverno se transformavam em outras espécies. Já durante a Idade Média, imaginava-se que andorinhas hibernavam no fundo de lagos congelados. O mistério só começou a ser desvendado séculos depois e, de certa forma, junto com outra lenda famosa: a de que cegonhas traziam bebês.
A crença estava relacionada à migração da cegonha-branca (Ciconia ciconia). Na Idade Média europeia, muitos casamentos aconteciam no início do verão. Na sequência, no início do outono, as cegonhas desapareciam e retornavam aproximadamente nove meses depois da temporada de casamentos, coincidindo com o nascimento de muitas crianças. A associação se popularizou por gerações. Até que, em 1822, algo incomum apareceu em um telhado da pequena cidade de Klütz, na Alemanha: uma cegonha com uma flecha atravessando o pescoço. Análises da origem da madeira da flecha confirmaram que ela havia viajado pelo menos 2.000 km entre a Europa e a África, e assim a compreensão moderna sobre migração ganhou um marco histórico.

A Cegonha flechada de Klütz, hoje preservada na Universidade de Rostock. A palavra em alemão Pfeilstorch (“cegonha-flecha”) foi criada para designar estes animais que chegavam à Europa atingidos por flechas ou lanças. Desde 1822, cerca de 23 desses casos foram registrados na Alemanha. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Pfeilstorch, foto do Zoologische Sammlung der Universität Rostock.
Décadas depois, em 1890, o dinamarquês Hans Mortensen inaugurou a marcação de aves com anilhas, permitindo conhecer rotas migratórias, longevidade e conectividade populacional. O método é amplamente utilizado até hoje, embora dependa de grande esforço de captura e recaptura. A partir de meados dos anos 1980, o surgimento de dispositivos que estimam posição pela luminosidade, radiotransmissores, e, posteriormente, de rastreadores GPS cada vez menores trouxe uma revolução aos estudos de migração, permitindo acompanhar trajetos completos inclusive de aves pequenas, como as andorinhas.
Existem cerca de 88 espécies de andorinhas no mundo, 18 delas no Brasil, todas apresentando algum tipo de movimento migratório. Seis espécies se reproduzem no Hemisfério Norte e chegam à América do Sul durante a nossa primavera e verão. No Brasil, andorinhas fazem parte do imaginário popular e aparecem frequentemente em praças e fiações elétricas, formando bandos expressivos e revoadas marcantes que, junto com as suas chegadas e partidas, inspiraram versos como os do Trio Parada Dura: “Nós somos andorinhas que vão e que vêm… Uma andorinha voando sozinha não faz verão”.

Bando de andorinhas-azuis (Progne subis) em Linhares, ES, Brasil. Foto: Gabriel Bonfá.
Há sete anos estudo uma dessas espécies, a andorinha-azul (Progne subis), observando os bandos que chegam ao Brasil entre setembro e abril. Conversando com moradores, percebo sempre dois pontos: encantamento com as revoadas ao amanhecer e entardecer, mas também incômodo com o barulho e o acúmulo de fezes nas áreas onde dormem; e a dúvida comum: “De onde elas vêm?”. A andorinha-azul se reproduz no sul do Canadá, nos Estados Unidos e no norte do México, mas passa a estação não reprodutiva praticamente em todo o território brasileiro. Um dos objetivos centrais da minha pesquisa é conectar cada região do Brasil às populações do Hemisfério Norte, muitas vezes separadas por dezenas de milhares de quilômetros.
Para compreender esses movimentos, é essencial conhecer a biologia da espécie. As andorinhas-azuis são divididas em três subespécies, isoladas geográfica e reprodutivamente, que diferem na distribuição, no tipo de ninho utilizado e em aspectos morfológicos sutis:
- A subespécie do leste, a mais estudada, usa ninhos artificiais em jardins da metade leste dos EUA e Canadá. A facilidade de captura e recaptura permitiu rastrear centenas de indivíduos via GPS, revelando que passam o período não reprodutivo principalmente na Amazônia, onde formam imensos dormitórios com até 500 mil aves.
- A subespécie do oeste nidifica em cavidades de árvores ao longo da costa oeste, do Canadá à Califórnia. Poucas populações utilizam ninhos artificiais e, por isso, poucas aves foram rastreadas, mas sabemos que aparecem durante a migração no litoral do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia.
- A subespécie do deserto utiliza ocos de cactos no deserto de Sonora (Arizona, Califórnia e noroeste do México). É a menos conhecida: seu destino migratório permaneceu um mistério até 2023, quando um indivíduo foi rastreado até o Nordeste do Brasil.
A facilidade de recapturar os mesmos indivíduos no leste da América do Norte permitiu o uso de dispositivos de rastreamento que funcionam como discos de memória, nos quais os dados só podem ser acessados quando a ave retorna ao mesmo ninho e o dispositivo é retirado. Já nas outras subespécies, esse processo é muito mais desafiador: além de ocuparem cavidades naturais em árvores altas ou ocos de cactos no deserto, locais de difícil acesso, essas populações são menos gregárias durante a reprodução, o que reduz as chances de capturar e, principalmente, recapturar os mesmos indivíduos. No Brasil é relativamente fácil capturar andorinhas nos imensos bandos que se formam para dormir, mas é praticamente impossível reencontrar no ano seguinte o mesmo indivíduo para recuperar dispositivos. Nos últimos anos, surgiram transmissores que enviam dados em tempo real via satélite, porém, até 2021, eles ainda eram pesados demais para serem usados em aves tão pequenas.
Isso mudou quando um novo rastreador de apenas 2 g se tornou disponível e em 2025, um marco tornou essa conexão ainda mais clara: cinco andorinhas-azuis foram equipadas com transmissores via satélite em um grande dormitório de Linhares, permitindo acompanhar em tempo real suas trajetórias migratórias até o Novo México, a Califórnia e a Colúmbia Britânica. Esses avanços têm revelado rotas, gargalos ecológicos e diferenças entre subespécies, abrindo caminho para um mapa cada vez mais detalhado e preciso da presença e dos movimentos da espécie no Brasil.

Andorinha-azul (Progne subis) com rádiotransmissor no dorso. Foto: Dado Galdieri/Hilaea Media
A conservação da andorinha-azul depende diretamente da colaboração entre pesquisadores e comunidades locais. Em muitas cidades brasileiras, essas aves dormem em praças e áreas urbanas, o que gera conflitos, mas que pode levar a medidas inadequadas, como podas ou remoção de árvores usadas como dormitórios. Ao mesmo tempo, plataformas de ciência cidadã como eBird, WikiAves e observações diretas de moradores permitem localizar bandos rapidamente, registrar datas de chegada e partida e monitorar mudanças ao longo dos anos. Esses dados são fundamentais especialmente diante das mudanças climáticas, que já vêm alterando padrões de chuva e disponibilidade de insetos, afetando a sobrevivência das aves durante sua estadia no Brasil. Assim, a participação da população é essencial para transformar potenciais conflitos em oportunidades de convivência e proteção.
A migração das aves não reconhece fronteiras, e a conservação também não pode reconhecê-las. Proteger espécies que viajam milhares de quilômetros exige redes de cooperação entre pesquisadores, instituições, comunidades e governos. Projetos que conectam diferentes países e continentes são essenciais para mapear rotas completas, compartilhar dados de rastreamento, comparar ameaças regionais e alinhar ações de conservação. Cada recaptura, cada nova marcação e cada dormitório monitorado são peças de um esforço global para compreender as aves viajantes.
Clarissa Santos
Mestre em ecologia pela Universidade Federal de São Carlos, aluna de doutorado em ecologia pela Universidade de São Paulo.
PARA SABER MAIS
Projeto Andorinha-azul: iniciativas de pesquisa que estudam migração, saúde das aves, uso de habitat e conectividade entre Brasil e América do Norte. andorinhaazul.org, Instagram: @andorinhazul
Purple Martin Conservation Association: ONG norte-americana que une educação ambiental, ciência cidadã e pesquisa para a conservação da andorinha-azul.
Plataformas de ciência cidadã:
eBird – banco de dados global e colaborativo de observações de aves
WikiAves – principal repositório de registros fotográficos e sonoros da avifauna brasileira.


