Evolução Simplificadora

A evolução é um processo tanto de aumento quanto de diminuição de complexidade

O conceito de evolução biológica tem sido frequentemente atado à ideia de progresso, não somente entre o público leigo, mas também no jornalismo científico, no ensino de ciências e, inclusive, na literatura acadêmica. A imagem de um macaco curvado assumindo gradualmente uma posição ereta até tornar-se um ser humano moderno, armado com uma lança ou um telefone celular, é uma das imagens mais comuns ligada ao conceito de evolução. 

O conceito científico de evolução é, em parte, filho de concepções progressistas como a geração espontânea, a cadeia dos seres e o evolucionismo de Lamarck. Mesmo o darwinismo, apesar do cuidado de Charles Darwin para evitar palavras como inferior ou superior, frequentemente flertou com a noção de progresso, incluindo os delírios eugênicos da primeira metade do século XX.

A associação entre evolução e progresso é extremamente problemática. Um dos problemas centrais é como definir que um ser vivo seja superior a outro. Critérios como, por exemplo, mais evoluído ou melhor adaptado são relativos a um contexto e perdem sentido na ramificadíssima árvore da vida.

No entanto, podemos assumir um critério menos controverso e dizer que alguns seres vivos são mais complexos do que outros, por exemplo, no sentido de que eles são compostos por mais partes e estas partes possuem mais relações entre si. Assim, podemos dizer que seres unicelulares são menos complexos do que seres compostos por vários tipos celulares especializados e integrados em sistemas de órgãos, como as plantas e os animais.

É inegável que durante a evolução seres mais complexos evoluíram de seres menos complexos. Parafraseando Jorge Wagensberg, algo aconteceu entre uma bactéria e Vinícius de Moraes.

Ainda assim, pensar na evolução como um processo de aumento de complexidade é inapropriado, porque a evolução não segue esta direção. Não existe uma tendência progressiva ao aumento de complexidade: o processo evolutivo origina tanto seres mais complexos quantos seres menos complexos.

Um artigo publicado este mês na revista Trends in Ecology & Evolution, de autoria de Maureen O’Malley e colaboradores, revisa alguns dos casos mais interessantes de perda de complexidade [Losing complexity: The role of simplification in macroevolution (Perdendo complexidade: o papel da simplificação na macroevolução)], incluindo a origem da célula eucarionte, dos fungos e dos animais.

Uma das principais causas de perda de complexidade é a evolução de hábitos de vida parasíticos. Mês passado, dois pesquisadores da Universidade da Califórnia, Sara Weinstein e Armand Kuris, publicaram um levantamento sobre o número de vezes que o hábito de vida parasita evoluiu em animais [Independent origins of parasitism in Animalia (Origens independentes de parasitismo en Animalia)]. Eles  mostraram que o parasitismo surgiu independentemente em mais de duzentos grupos, indo muito além dos célebres helmintos do intestino de vertebrados. O parasitismo evoluiu também em anelídeos, moluscos, cnidários, rotíferos e muitíssimos artrópodes.

As relações de parentescos destes animais simplificados, parasitas ou não, são difíceis de serem estabelecidas, pois exigem comparar animais muito simples a animais muito complexos. Mas com o avanço das técnicas moleculares, tornou-se possível comparar o DNA destes grupos e propor hipótesis mais robustas sobre quem são seus parentes mais próximos. Um dos últimos enigmas parece ter sido resolvido este mês. Ortonectídeos, parasitas formados por poucas células e sem sistemas respiratório, digestivo e excretor, são parentes simplificados de alguns dos animais mais complexos que conhecemos: os moluscos e anelídeos [The genome of Intoshia linei affirms orthonectids as highly simplified spiralians (O genome de Intoshia linei confirma Ortonectídeos como spiralians altamente simplificados)].

A simplificação de estruturas individuais frequentemente ocorre a partir da associação íntima entre diferentes seres vivos, seja ela simbiôntica ou parasítica, como vimos em uma postagem anterior sobre a origem e perda das mitocôndrias. Talvez o caso mais conhecido de simbiose seja o dos líquens, associações entre fungos e algas que, quando separados, apresentam morfologias e ecologias muito diferentes. Conhecidos pela ciência desde o século XIX, eles haviam guardado uma grande surpresa. Toby Spribille e colaboradores publicaram este mês na revista Science que há um terceiro parceiro nesta simbiose: as leveduras (ver o vídeo abaixo) [Basidiomycete yeasts in the cortex of ascomycete macrolichens]. E o que são as leveduras? Fungos unicelulares que evoluíram de ancestrais multicelulares (mais de uma vez!).

Na história da vida na Terra, trajetórias evolutivas independentes são frequentemente unidas por estreitas associações ecológicas, podendo evoluir em direções inesperadas, aumentando ou não a complexidade, ramificando-se e reinventando-se, mas jamais em uma marcha progressiva linear.

Já dizia Vinícius de Moraes, “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.

 

João Francisco Botelho (Yale University)

 

PARA SABER MAIS:

O’Malley MA, Wideman JG,  Ruiz-Trillo I. Losing Complexity: The Role of Simplification in Macroevolution. Trends Ecol Evol 31:608-621, 2016.

Albalat R,  Canestro C. Evolution by gene loss. Nat Rev Genet 17:379-391, 2016.

Spribille et al. Basidiomycete yeasts in the cortex of ascomycete macrolichens. Science,Vol. 353, Issue 6298, pp. 488-492, 2016.

Mikhailov Kirill V, Slyusarev Georgy S, Nikitin Mikhail A, Logacheva Maria D, Penin Aleksey A, Aleoshin Vladimir V,  Panchin Yuri V. The Genome of Intoshia linei Affirms Orthonectids as Highly Simplified Spiralians. Curr Biol 26:1768-1774, 2016.

Szathmary E,  Smith JM. 1995. The major evolutionary transitions. Nature 374:227-232.

5 comentários em “Evolução Simplificadora”

  1. Ótimo texto.
    Por sinal, uma divulgação científica de qualidade como está sendo a deste blog, é uma ótima ideia.
    Fiquei apenas com uma dúvida.
    No texto está escrito o seguinte: “Spribille e colaboradores publicaram este mês na revista Science que há um terceiro parceiro nesta simbiose: as leveduras”.
    Minha dúvida é a seguinte: a hipótese dos autores seria de que (i) todos os líquens são formados por esses três parceiros ou de que (ii) alguns líquens possuem as leveduras, além de fungos e algas. Ou seja, minha dúvida é sobre o grau de generalidade do que foi encontrado no artigo. A natureza dos líquens (sua identidade) é dada pela simbiose entre três parceiros ou há um terceiro (leveduras) que podem ou não estar presentes?

    Um abraço,
    Claudio

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    1. Oi Claudio,
      A levedura foi encontrada em 52 gêneros de liquens provenientes de seis continentes e há evidências morfológicas e metabólicas de que elas também estariam presentes no cortex (parte exterior) de outros liquens. O interessante é que estes dados ajudam a entender porque os liquens, quando cultivados em laboratório a partir da união alga-fungo, apresentam uma morfologia muito diferente ou nem mesmo sobrevivem. Parece que estava faltando alguma coisa…
      Um abraço,
      Chico

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      1. Muito obrigado pela resposta.
        Realmente, os dados parecem bastante robustos e permitem uma generalização no que se refere à importância das leveduras na constituição dos liquens.
        Eu estava na dúvida se era um achado para algumas espécies apenas, mas ao que tudo indica parece que as leveduras são mesmo constitutivas da maioria dos liquens.
        E é realmente interessante que esse achado possa explicar as diferenças na morfologia de liquens cultivados em laboratório (a partir de alga e fungo) em comparação com liquens no seu ambiente de origem. Novamente, obrigado pela resposta.
        Um abraço,
        Claudio

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  2. Oi Claudio
    Legal que está seguindo o blog!
    Muito interessante ver algo que aprendemos durante tanto tempo mudando diante de nossos olhos não é?
    É ver a história da ciência se desdobrando!

    Abs
    Charbel

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